I
O valor do corpo sofreu muitas oscilações ao longo da história, terminando na abordagem mais positivista e sexual de hoje. Para os gregos, acreditando no ditado que justapunha mente e corpo sãos, mas também ao olharmos para a estatuária, reflectirmos sobre a criação dos Jogos Olímpicos ou o heroísmo bélico, mesmo que mítico, de alguns pensadores, nomeadamente Sócrates (guerreiro inquebrantável), o corpo, a par do bom e do belo discorrer, revelava, na forma adquirida, um determinado estatuto. É por isso que a contracultura cínica zombava quer da razão, quer do corpo sociais (reféns de cânones), é também por isso que Sócrates, na ambivalência que lhe atribuiu Platão, divergiu da maioria ao aceitar que o seu corpo desaparecesse, isto é, desvalorizou aquilo que por princípio cultural só podia ser valorizado e aceitou matar a máquina corporal bebendo a cicuta (no final do Fédon surge a hipótese da alma viver fora do corpo carcereiro, foi isso que levou Nietzsche a dizer que o cristianismo é um platonismo para o povo – Para Além Bem e Mal). Este fascínio pelo corpo será revogado pela pastoral cristã, capturando o bem para o campo espiritual; via privilegiada de acesso ao divino, claro, mas também única esperança de perenidade, num tempo em que se morria cedo e muitas vezes em sofrimento atroz. Talvez o movimento das Cruzadas tenha reposto algum equilíbrio entre corpo e alma, rezava-se mas também se combatia, e era preciso força e destreza para não ser desmembrado no campo de batalha. Depois, o colonialismo reforçou o eurocentrismo, que tinha no exibicionismo das vestimentas um código eficaz para publicitar as hierarquias sociais e o poder económico. A época vitoriana manteve tudo (com a sua poderosa engrenagem de liberalismo económico e conservadorismo ético) e reforçou as bases de uma moral que não admitia desvios, o corpo foi castigado com poses rígidas e roupas que o escondiam até do olhar mais perscrutador. Excepto o peito feminino, amostra de beleza e sexualidade, vislumbre bastante desligado do resto do corpo, não era uma permissão para a imaginação avançar, mas uma espécie de pequeno contentamento, sem mais, uma falsa abertura que assegurava a interdição do resto (obtido depois de contratualizar um casamento, mas percorrido por uma libido bastante indigente). Houve, claro, histrionismo nas cortes exóticas dos soberanos esclarecidos. O fascínio pelos colãs masculinos manifesta um pequeno retorno ao corpo ginasticado dos gregos, mas isso entrava em contradição com as cabeleiras imensas que pareciam copas de árvores. Entretanto, chegou-se ao século xx e toda a gente se foi despindo, um movimento de despudorização envolveu a nova humanidade, que voltou a mostrar o corpo, sempre bastante sexuado. Como geralmente acontece, houve reacções, hoje mais visíveis no sexismo atávico de grande parte da cultura islâmica (generalizo). Num certo sentido, aconteceu uma real apropriação do corpo próprio pelos indivíduos, uma micro biopolítica baniu alguns dos códigos morais que durante muito tempo desvalorizaram o corpo masculino e culparam o feminino. Regressou a tendência para a nudez, com alguns óbvios exibicionismos despropositados. Assim se reforçou um dos direitos individuais mais básicos e essenciais: a de publicitar livremente o corpo próprio (embora raramente se coloquem as expectativas à margem de certos interditos sociais, mas isto é uma auto-censura prévia necessária à ordem social que também nós desejamos, é aqui que cabe a aparente contradição do governo feminista sueco ter exigido que as jogadoras de xadrez que foram/estão no campeonato do mundo no Irão usem véu, como a de não fazermos nudismo em qualquer praia, mesmo quando a canícula aperta).
II
Esta revalorização do corpo talvez tenha sido feita, porém, quase só à custa do corpo fisiológico, não recuperamos o corpo incodificável e surpreendente de Espinosa ou o corpo “Grande Razão” de Nietzsche. Ficamo-nos pelo corpo libidinoso e pelo corpo máquina, pelo desejo sexual e pela saúde. Veja-se como se desenvolve a publicidade, quer seja sobre carros ou sobre iogurtes. Vale a pena, pois, olhando também para as sombras, recuperar uma pequena nota de Maurice Merleau-Ponty sobre a significação metafísica do corpo, forma de não deixar que a balança enlouqueça e se esqueça que tem dois pratos (o físico e o para lá do físico). Na Phénoménologie de la perception (1945), Merleau-Ponty escreve:
“Sem dúvida que é preciso reconhecer que o pudor, o desejo, o amor em geral têm um significado metafísico, isto é, que são incompreensíveis se abordarmos o homem como uma máquina governada por leis naturais, ou mesmo como um ‘feixe de instintos’, e que eles concernem o homem como uma consciência e como liberdade. O homem não mostra comummente o seu corpo e quando o faz é ao mesmo tempo com receio e com vontade de fascinar. Parece-lhe que o olhar estrangeiro que percorre o seu corpo o rouba a si mesmo, ou que pelo contrário a exposição do seu corpo vai dar-lhe o outro sem defesa, e é então outrem que será reduzido à escravatura. O pudor e o impudor tomam, pois, lugar numa dialéctica do eu e do outro, que é a do mestre e a do escravo: porque tenho um corpo posso ser reduzido a objecto pelo olhar de outrem e deixar de contar para ele como pessoa, ou então, pelo contrário, posso tornar-me o seu mestre, passando a ser a minha vez de o olhar, mas este domínio é um impasse, já que no momento em que o meu valor é reconhecido pelo desejo de outrem, ele já não é uma pessoa por quem desejava ser reconhecido, é um ser fascinado sem liberdade, e neste sentido já não conta verdadeiramente para mim. Dizer que tenho um corpo é, pois, uma maneira de dizer que posso ser reconhecido como um objecto e que procuro ser visto como um sujeito, que outrem pode ser o meu mestre ou o meu escravo, de maneira que o pudor e o impudor exprimem a dialéctica da pluralidade das consciências e que elas têm bem um significado metafísico.”
III
Pelo pudor e a relação dialéctica de um corpo que pode ser mestre ou escravo, Merleau-Ponty pretende recuperar uma dimensão metafísica que a secularização extrema, e rápida, parecia ter rasurado. Está, assim, em contracorrente, mesmo se se trata de um discurso filosófico. Revelar os resquício metafísicos do corpo é contrariar as industrias da saúde e da beleza, as vacinas e os antibióticos tanto quanto os cremes e os perfumes. Ao mesmo tempo, a dimensão metafísica do corpo quando avança para um jogo relacional amplifica a consciência de si e o problema da liberdade, “que corpo devo apresentar ao outro, que corpo está o outro a ver? Quando um corpo me fascina, quanta liberdade perco?”. A metafísica do corpo influi, pois, na concepção do homem (humanidade), máquina ou consciência e liberdade. Nesta última estão dois operadores fundamentais do ser homem: o pudor e o amor. O sentimento de vergonha ligado ao desnudamento inoportuno faz de nós escravos, quem se envergonha perde o domínio, torna-se escravo. Mas isto não significa que o indivíduo desavergonhado, aquele que amoralizou os códigos sociais, seja um sobre-homem, vejo-o mais como delinquente moral ou doente social, retirando liberdade ao outro quando desbarata, pela perplexidade que provoca, a sua autonomia. Na relação entre dois corpos há sempre um confronto de consciências, a forma como o outro me vê influencia a forma como me vejo a mim mesmo (por isso, uma prostituta pode fazer diferentes usos do seu corpo, passar com alguma facilidade de meretriz a mãe ou esposa, ela deixa que o seu corpo, pelo menos a parte mais superficial, se encaixe no olhar interpretativo do outro, um corpo como cubo Rubik). Há também a liberdade de ajustar o corpo às circunstâncias, jogando com a sua polivalência, daí que se compreenda mal quem se prende a uma linha estrita de apresentação do corpo, muitas vezes escondendo-o (geralmente devido a imperativos teológicos). Neste caso, estereótipos sociais ou monomanias subjectivas empobrecem o esplendor do corpo. Mas também pode ser devido a um pudor extremo nascido numa pura reflexão ou o medo de perder o domínio de si pelas investidas do olhar de outrem.