Fichário; Uma ideia contemporânea aplicada a diversos sectores da cadeia produtiva​​​​​​​; Mapas; Pai; Um foto de José Cândido de Lima; Exercício; Algo a dizer ao seu tempo

Fichário

Aquela vida que não
serve de presente nem traz uma
lição ou clareza de propósito. 
Sem um proceder moralmente aproveitável lições
virtudes adquiridas.
Aquela vida sem fato
digno de nota.
Aquela
vida.


Uma ideia contemporânea aplicada a diversos sectores da cadeia produtiva

A figura do indigente de cujo amplo sistema é ainda
potencial dizimista e colaborador comprova que
algumas pessoas não desenvolveram suficientemente a
capacidade para serem bem sucedidas ou
não abraçaram com afinco o projeto que, de fato
lhe oportunizaria uma
vida melhor


Mapas

Negando a deriva, o mapa é a glosa estática dos percursos.
A mobilidade rasga a idealização euclidiana do mapa.
Sob o ponto de vista da imobilidade desejante
nenhum mapa é possível.
Os mapas são feitos para seguir, desbastar, invadir, possuir, ocupar, adonar, dizimar, in/fluir.
O mapa é, sobretudo, um instrumento pantográfico militar.
Um mapa para retroceder outro para estar parado.
Um mapa para a desistência.


Pai

Como quando ali no epicentro de
um tumulto de reses
aspas afiadas foices
enodoadas o burrifo e
cada mugem rente à más
cara do menino medroso
só no abrigo de sua sombra
magra – a mesma mão áspera
defumada nas coivaras


Um foto de José Cândido de Lima

Por que veem tão depressa?
Talvez porque ainda haja futuro ou
algum outro tempo menos a
este homem só na sala olhos
cravados no instante toda
respiração destinada ao presente

Mirar sem recordação - esta a
luta: algo decepou a memória
muda serrilhada a nódoa dos esforços
abandona as mãos desse totalmente no
presente não porque respire mas
inevitável 

Diante de tanto projeto abolido
mirar fixamente o instante a poça
luminosa no chão que se
abre toda hora às vezes tão
nítido


Exercício

Mergulhe na aridez
afunde as mãos na
raiz da areia e
traga isso na
memória



Algo a dizer ao seu tempo

Um recuperador de
ativos financeiros
o herói
poeta metafísico promotor
de sinergias
o celebrante


Coisas que é preciso calar

Tiveste um segredo?...

Guarda-o bem, pode ser que nunca mais o tenhas. Os segredos consomem-se, é por isso que são segredos. Se te guardam tempo demais, é como se nunca os tivesses tido. Os segredos desenrolam-se dentro de ti. Não tenhas medo deles. Se foste infeliz, nunca o contes a ninguém, tornar-se-á segredo e a realidade é sempre pior do que os outros, por isso, nunca contes um segredo a ti próprio a não ser que nunca mais o saibas.

É muito melhor deixar tudo em segredo.

Lembras-te, daquela vez, deixado em baixo, secreto, sentido ou informado?, na infância que nunca foste, por quem te devia amar? Guarda segredo.

Lembras-te, daquela vez, em que estouraste, em que disseste, isto nunca mais, nunca mais, jamais, guarda segredo, não vá tornar-se realidade, e os segredos não são sofrimentos se não os proclamares, se não te prostrares e disseres: é este o meu segredo, é esta a minha vontade.

Não proves disso.

Não proves disso, deixa-te em paz, há algo em tudo que continua a sofrer. Parte disso. Deixa-te disso. Guarda segredo.

Enterra tudo. Revela nada. Cala o mundo.

Encontrarás, deixarás, nisso segredos.

Não precises de um segredo.

Eles deixam-te a sós, e tu queres estar só, nem que seja para que não conheças a tua voz, a tua voz que muda, a tua voz que rasteja, que sibila, que pressagia, que não diz.

Estás só contigo. Não tens segredos. Não tenhas segredos.

Quando morreres ninguém os conhecerá. Não te lembres disso.

Reiterando o pedido de desculpas,

Pedro BF

Corpo metafísico e economia do pudor

I

O valor do corpo sofreu muitas oscilações ao longo da história, terminando na abordagem mais positivista e sexual de hoje. Para os gregos, acreditando no ditado que justapunha mente e corpo sãos, mas também ao olharmos para a estatuária, reflectirmos sobre a criação dos Jogos Olímpicos ou o heroísmo bélico, mesmo que mítico, de alguns pensadores, nomeadamente Sócrates (guerreiro inquebrantável), o corpo, a par do bom e do belo discorrer, revelava, na forma adquirida, um determinado estatuto. É por isso que a contracultura cínica zombava quer da razão, quer do corpo sociais (reféns de cânones), é também por isso que Sócrates, na ambivalência que lhe atribuiu Platão, divergiu da maioria ao aceitar que o seu corpo desaparecesse, isto é, desvalorizou aquilo que por princípio cultural só podia ser valorizado e aceitou matar a máquina corporal bebendo a cicuta (no final do Fédon surge a hipótese da alma viver fora do corpo carcereiro, foi isso que levou Nietzsche a dizer que o cristianismo é um platonismo para o povo – Para Além Bem e Mal). Este fascínio pelo corpo será revogado pela pastoral cristã, capturando o bem para o campo espiritual; via privilegiada de acesso ao divino, claro, mas também única esperança de perenidade, num tempo em que se morria cedo e muitas vezes em sofrimento atroz. Talvez o movimento das Cruzadas tenha reposto algum equilíbrio entre corpo e alma, rezava-se mas também se combatia, e era preciso força e destreza para não ser desmembrado no campo de batalha. Depois, o colonialismo reforçou o eurocentrismo, que tinha no exibicionismo das vestimentas um código eficaz para publicitar as hierarquias sociais e o poder económico. A época vitoriana manteve tudo (com a sua poderosa engrenagem de liberalismo económico e conservadorismo ético) e reforçou as bases de uma moral que não admitia desvios, o corpo foi castigado com poses rígidas e roupas que o escondiam até do olhar mais perscrutador. Excepto o peito feminino, amostra de beleza e sexualidade, vislumbre bastante desligado do resto do corpo, não era uma permissão para a imaginação avançar, mas uma espécie de pequeno contentamento, sem mais, uma falsa abertura que assegurava a interdição do resto (obtido depois de contratualizar um casamento, mas percorrido por uma libido bastante indigente). Houve, claro, histrionismo nas cortes exóticas dos soberanos esclarecidos. O fascínio pelos colãs masculinos manifesta um pequeno retorno ao corpo ginasticado dos gregos, mas isso entrava em contradição com as cabeleiras imensas que pareciam copas de árvores. Entretanto, chegou-se ao século xx e toda a gente se foi despindo, um movimento de despudorização envolveu a nova humanidade, que voltou a mostrar o corpo, sempre bastante sexuado. Como geralmente acontece, houve reacções, hoje mais visíveis no sexismo atávico de grande parte da cultura islâmica (generalizo). Num certo sentido, aconteceu uma real apropriação do corpo próprio pelos indivíduos, uma micro biopolítica baniu alguns dos códigos morais que durante muito tempo desvalorizaram o corpo masculino e culparam o feminino. Regressou a tendência para a nudez, com alguns óbvios exibicionismos despropositados. Assim se reforçou um dos direitos individuais mais básicos e essenciais: a de publicitar livremente o corpo próprio (embora raramente se coloquem as expectativas à margem de certos interditos sociais, mas isto é uma auto-censura prévia necessária à ordem social que também nós desejamos, é aqui que cabe a aparente contradição do governo feminista sueco ter exigido que as jogadoras de xadrez que foram/estão no campeonato do mundo no Irão usem véu, como a de não fazermos nudismo em qualquer praia, mesmo quando a canícula aperta).

II

Esta revalorização do corpo talvez tenha sido feita, porém, quase só à custa do corpo fisiológico, não recuperamos o corpo incodificável e surpreendente de Espinosa ou o corpo “Grande Razão” de Nietzsche. Ficamo-nos pelo corpo libidinoso e pelo corpo máquina, pelo desejo sexual e pela saúde. Veja-se como se desenvolve a publicidade, quer seja sobre carros ou sobre iogurtes. Vale a pena, pois, olhando também para as sombras, recuperar uma pequena nota de Maurice Merleau-Ponty sobre a significação metafísica do corpo, forma de não deixar que a balança enlouqueça e se esqueça que tem dois pratos (o físico e o para lá do físico). Na Phénoménologie de la perception (1945), Merleau-Ponty escreve:

Sem dúvida que é preciso reconhecer que o pudor, o desejo, o amor em geral têm um significado metafísico, isto é, que são incompreensíveis se abordarmos o homem como uma máquina governada por leis naturais, ou mesmo como um ‘feixe de instintos’, e que eles concernem o homem como uma consciência e como liberdade. O homem não mostra comummente o seu corpo e quando o faz é ao mesmo tempo com receio e com vontade de fascinar. Parece-lhe que o olhar estrangeiro que percorre o seu corpo o rouba a si mesmo, ou que pelo contrário a exposição do seu corpo vai dar-lhe o outro sem defesa, e é então outrem que será reduzido à escravatura. O pudor e o impudor tomam, pois, lugar numa dialéctica do eu e do outro, que é a do mestre e a do escravo: porque tenho um corpo posso ser reduzido a objecto pelo olhar de outrem e deixar de contar para ele como pessoa, ou então, pelo contrário, posso tornar-me o seu mestre, passando a ser a minha vez de o olhar,  mas este domínio é um impasse, já que no momento em que o meu valor é reconhecido pelo desejo de outrem, ele já não é uma pessoa por quem desejava ser reconhecido, é um ser fascinado sem liberdade, e neste sentido já não conta verdadeiramente para mim. Dizer que tenho um corpo é, pois, uma maneira de dizer que posso ser reconhecido como um objecto e que procuro ser visto como um sujeito, que outrem pode ser o meu mestre ou o meu escravo, de maneira que o pudor e o impudor exprimem a dialéctica da pluralidade das consciências e que elas têm bem um significado metafísico.”

III

Pelo pudor e a relação dialéctica de um corpo que pode ser mestre ou escravo, Merleau-Ponty pretende recuperar uma dimensão metafísica que a secularização extrema, e rápida, parecia ter rasurado. Está, assim, em contracorrente, mesmo se se trata de um discurso filosófico. Revelar os resquício metafísicos do corpo é contrariar as industrias da saúde e da beleza, as vacinas e os antibióticos tanto quanto os cremes e os perfumes. Ao mesmo tempo, a dimensão metafísica do corpo quando avança para um jogo relacional amplifica a consciência de si e o problema da liberdade, “que corpo devo apresentar ao outro, que corpo está o outro a ver? Quando um corpo me fascina, quanta liberdade perco?”. A metafísica do corpo influi, pois, na concepção do homem (humanidade), máquina ou consciência e liberdade. Nesta última estão dois operadores fundamentais do ser homem: o pudor e o amor. O sentimento de vergonha ligado ao desnudamento inoportuno faz de nós escravos, quem se envergonha perde o domínio, torna-se escravo. Mas isto não significa que o indivíduo desavergonhado, aquele que amoralizou os códigos sociais, seja um sobre-homem, vejo-o mais como delinquente moral ou doente social, retirando liberdade ao outro quando desbarata, pela perplexidade que provoca, a sua autonomia. Na relação entre dois corpos há sempre um confronto de consciências, a forma como o outro me vê influencia a forma como me vejo a mim mesmo (por isso, uma prostituta pode fazer diferentes usos do seu corpo, passar com alguma facilidade de meretriz a mãe ou esposa, ela deixa que o seu corpo, pelo menos a parte mais superficial, se encaixe no olhar interpretativo do outro, um corpo como cubo Rubik). Há também a liberdade de ajustar o corpo às circunstâncias, jogando com a sua polivalência, daí que se compreenda mal quem se prende a uma linha estrita de apresentação do corpo, muitas vezes escondendo-o (geralmente devido a imperativos teológicos). Neste caso, estereótipos sociais ou monomanias subjectivas empobrecem o esplendor do corpo. Mas também pode ser devido a um pudor extremo nascido numa pura reflexão ou o medo de perder o domínio de si pelas investidas do olhar de outrem.