Onze
/Tinha dezassete anos quando matei o meu primeiro progenitor. Quando digo primeiro quero dizer não apenas o primeiro dos dois, porque utilizo progenitores no sentido de pais, mas também o primeiro porque me refiro ao meu pai, aquele que concebeu a semente que germinou na minha mãe. A minha mãe, matei-a dois anos depois.
Portanto, tinha dezassete anos quando matei o meu pai. Foi num dia igual a tantos outros, sem nenhuma efeméride em particular que me levasse a escolher aquele dia em vez de outro. Na verdade, não escolhi sequer. Aconteceu. Aconteceu ser naquele dia que cheguei ao onze. A psicóloga da escola, há uns anos, antes de eu perceber que aquelas visitas eram inúteis e desistir de lá ir, tinha-me ensinado a contar até dez quando sentisse picos de raiva. Dizia-me: “Conta até dez, Teresa. Antes de dizeres o que te vai na alma ou fazeres qualquer coisa irreflectida, conta até dez. Vais ver que depois serás mais ponderada.” Usei a técnica vezes e vezes sem conta, porém, naquele dia cheguei ao onze e a raiva ainda lá estava.
A minha mãe estava a fazer o jantar enquanto o meu pai estava, como sempre, na tasca da rua, a embebedar-se com os amigos enquanto jogavam à sueca e falavam de futebol, de gajas e de todo o tipo de habilidades incríveis que cada um julgava ter em maior escala do que os outros. Eu estava na sala a ver televisão. Há já muito tempo que desistira de ajudar a minha mãe. Ela gostava que o meu pai estivesse fora, porque lhe dava tempo de preparar as coisas com mais cuidado e afinco. E era preciso todo o cuidado e afinco.
Quando o meu pai chegou a minha mãe tinha já a mesa posta e a comida pronta a ser servida. Eu já desligara a televisão e encontrava-me de pé junto à minha cadeira, conforme ordens da minha mãe, a que chamava regras de bom comportamento, esperando que o meu pai se sentasse para poder imitar o gesto. Quando se sentou, cambaleante, revelou logo que vinha de um dia mau.
“A merda do jantar vem ou não?” disse.
A minha mãe serviu-o sem fazer comentários. Geralmente não acertava nas frases que ele queria ouvir, por isso, na maioria das vezes, decidia nem tentar. Depois serviu-me a mim e só por fim se serviu a ela. Começámos a comer depois de o meu pai levar a primeira garfada à boca. Eu, enraivecida com o estado do meu pai, como que adivinhando a avalanche para breve, comia depressa e sem levantar a cabeça do prato. O meu pai comia lentamente, mastigando de boca aberta, deixando cair pedaços de comida para cima da camisa. Quando a cena parecia pronta a entrar em piloto automático, sem sobressaltos, o meu pai deixou cair os talheres com estrondo no prato.
“Esta merda não tem sal porquê?” disse.
“Eu pus sal, querido,” disse a minha mãe. “Mas sabes que não podes abusar. O médico já te avisou.” Tentava imprimir candura à voz, mas as cordas vocais tremiam-lhe de pavor.
O meu pai levantou-se, muito calmamente, como fazia sempre nestas situações, e dirigiu-se à minha mãe. A minha mãe, que sabia tão bem como eu o que se ia passar, deixou-se ficar, sentada, costas direitas, mãos sobre o colo, como boa esposa que era, à espera da bofetada que ele já preparava. A enorme e gorda palma da mão direita do meu pai embateu com tal violência na face da minha mãe que ela caiu no chão. Ele pegou no prato dela e atirou-o à parede, onde este se estilhaçou em pedaços, deixando um caldo acastanhado a escorrer até ao chão, onde já havia comida espalhada por todo o lado.
“Isto não é comida,” disse o meu pai, já a gritar. “Não é nada! Prefiro comer merda. Se voltas a fazer um jantar assim corto-te as mãos. Que não te servem para nada se nem um jantar decente para o teu marido sabes fazer.” A ameaça disse-a já à porta de casa. Depois saiu. Foi comer qualquer coisa ao café.
A minha mãe levantou-se, tinha a cara vermelha e estava ainda atordoada da forte pancada, e foi buscar a vassoura e o esfregão para limpar tudo aquilo. Tinha que ter tudo impecável antes de ele voltar. Enquanto limpava ia pedindo em voz baixa o perdão de Deus, que havia de ter clemência de uma pobre mulher que apenas se tinha enganado na quantidade de sal. Deus, na sua infinita misericórdia, havia de a perdoar, e se não o fizesse era porque ela, certamente, não o merecia, pois nem um jantar que agradasse ao marido sabia fazer.
Eu observava a minha mãe enquanto ela limpava o chão, ouvia as suas súplicas, e sentia em mim um ódio de morte. Odiava-a mais a ela do que ao meu pai. Odiava-a por se subjugar assim à vontade do marido. E a minha mãe, como se me ouvisse pensar, disse, “Sei que me odeias. Mas odeias-me pelas razões erradas. Devias odiar-me por não saber fazer um jantar. Não conseguir ser uma boa esposa. Nunca sejas assim.” Eu não lhe respondi, limitei-me a olhar com desprezo e a subir para o meu quarto. Ouvi-a, ainda, dizer entredentes, não exactamente para mim ou para Deus, mas para ambos ou para nenhum dos dois, “Deus te perdoe, minha filha, que não sabes o que é o amor.”
Quando fechei a porta do meu quarto e me sentei na cama, disse, também entredentes e não exactamente para a minha mãe ou para Deus, em que nem sequer acredito, “Onze.” Podia ser mais, podia ser vinte, ou trinta, se tivesse começado a contar há mais tempo. Tinha começado há uns dois, três meses antes e cheguei ao onze naquele dia. Ainda me lembro de todos. Um, bife mal passado. Dois, demasiado azeite. Três, arroz empapado. Quatro, bacalhau muito salgado. Cinco, pouco chouriço no caldo verde. Seis, bife mal passado outra vez. Sete, devia haver salada. Oito, demasiado picante. Nove, batatas demasiado cozidas. Dez, o peixe tinha um sabor esquisito. A raiva não me abandonou, não diminuiu. Cheguei ao onze, falta de sal, e sabia o que tinha de fazer para acabar com aquilo. Fiquei acordada até ouvir o meu pai chegar a casa. Sabia que não ia ser preciso especial atenção para o ouvir, porque a bebedeira não lhe permitia ser cuidadoso ou silencioso. Quem tinha de ser cuidadosa e silenciosa era eu, não por causa do meu pai mas por causa da minha mãe, recolhida no quarto, provavelmente ainda acordada, à espera de ouvir chegar o marido.
Saí do meu quarto quando o meu pai começou a subir as escadas. Saí com meias grossas nos pés e umas luvas nas mãos. Provavelmente, esta segunda precaução era desnecessária, mas achei por bem fazer a coisa assim. As meias eram para que os meus passos não se ouvissem. Quando o meu pai estava a alcançar o penúltimo degrau, apareci silenciosa no topo da escada e empurrei-o com força suficiente para o fazer cair até à base dos dezanove degraus. Não fiquei para ver como a cena terminava. Voltei sorrateira para o meu quarto e só de lá saí quando a minha mãe começou a gritar e a chamar o meu nome. A causa de morte foi a queda e as lesões que provocou. A causa da queda foi a bebedeira.
A paz que eu esperava trazer ao lar nunca se aproximou sequer do alpendre. A minha mãe passou meses enterrada numa depressão profunda, chorando copiosamente até as lágrimas se lhe esgotarem e já não conseguir senão soluçar em seco. Fazia-lhe falta o marido. O ódio que eu sentia por ela não só não se atenuou como se transformava dentro de mim em algo mais hediondo do que ódio. Depois de ter sido internada, alimentada a soro, e regressado a casa em melhor estado, durou apenas três semanas a voltar à depressão. A causa de morte foi um mal calculado cocktail de medicamentos, certamente provocado pelo discernimento atrofiado que a minha mãe tinha nessa altura.