Tamanho foi o ódio e a má vontade

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Uma senhora chorava a meu lado pelo marido estracinhado por um comboio. Ela ainda ouvia o estalar dos ossos e sentia o fedor e os salpicos / pedaços do marido que lhe tinham saltado para o vestido e conservava a imagem daquele corpo irreconhecível (carne, ossos, tripas, líquidos amarelados e muito vermelho por todo o lado) que não poderia ser o do esposo ou o de um humano.  "Foi aqui que o meu marido morreu." Antes desta frase, preparava-me para a conversa com o terapeuta, rabiscando três ou quatro palavras ridículas no caderno (ainda que o terapeuta repita que nada é ridículo):  Imperfeição, medo da rejeição, decepção, vergonha: evitar a exposição, competição, medo de cometer erros, medo de falhar e de não ter valor, nunca serei bom o suficiente, como fugir da vergonha? negação, insegurança: culpar os outros e a mim próprio, raiva, intolerância. Adoraria permanecer calado a escutar as observações do doutor sobre a minha personalidade megalómana e obsessiva e incapaz de cumprir contratos e compromissos. "E então?" Qualquer frase minha suscita um "e então?" do doutor. Descobri a cura para o cancro, e então?, leio Joyce, e então?, tenho as mulheres que quiser mas só quero a minha, e então?, fui abandonado pelos meu pais, e então?, só consigo pensar em sexo, e então? Tinha os olhos pregados a uma mulher de pernas cruzadas. Fascinam-me fêmeas que saibam escolher as meias e os sapatos certos. Provocadora, desafiando-me, fingindo estar atenta ao telemóvel — na minha mente, as mulheres sempre provocadoras, suplicando puxões de cabelo, dentadas na nuca, palmadas nas nádegas, iguais a uma mãe grotesca, a minha mãe, capaz de fornicar com qualquer um—, a mulher fardada de hospedeira deixava-me na disposição de sair na estação em que ela saísse e agarrá-la por trás num beco e rasgar-lhe as vestes. Intelectual saído da casca, volta para a carapaça. Atleta, atira-te de cabeça. Ideias contraditórias ou, parafraseando o terapeuta, ambivalências. O macaco controlado pela obra literária que traz no bolso. Esfumaram-se-me as costumeiras obsessões assim que ouvi a frase da mulher do suicida. O macaco e o intelectual fundiram-se num coscuvilheiro ou sujeito de cérebro mirrado que não resiste à questão: "Por que motivo se matou o seu marido?" O marido sofria de esquizofrenia, ouvia vozes, dizia que existia um eu dentro de um eu que falava e o protegia, e que existia um outro eu que às vezes o impelia a protagonizar as piores asneiras, como espancar arrumadores de carros ou cuspir em pratos de restaurante ou apodar a sogra de vaquinha, e que existia ainda um outro eu que muito raramente abafava os outros eus e desligava a máquina e fazia o homem desmaiar. A mulher não encontrava melhor explicação para o desaparecimento do marido: um eu que sufocava os outros, uma parte dentro do indivíduo que abafava diferentes personalidades coexistentes dentro de um corpo, que neutralizava qualquer sentimento, desde o amor à raiva. A hospedeira de pernas cruzadas continuava a mirar-me de esguelha, eu cogitava numa forma de ser um cidadão honesto que, simultaneamente, conseguisse amparar as dores de uma viúva, sovar uma hospedeira numa esquina e responder aos "então?" do terapeuta. Escrevinhei no caderno: Eu sou eu e outro e outro e outro e todos e nenhum eu por na verdade ser aquele que sonhei, aquele só existente numa utopia, isto é, num mundo ou realidade inconcebível.  Mais tarde, o terapeuta colocar-me-ia duas questões: a) "Por que razão não consolou a viúva de maneira a que ela sentisse que se preocupava com ela?"; b) "O que o atraía na hospedeira?" Responder-lhe-ia protegido pela máscara de pedra que só tiro à noite, durante os pesadelos: “Por indiferença, por me atraírem aquelas que se me mostram altivas ou convencidas." E então? Sentir-me um macaco a transformar-se em algo ainda pior do que um macaco. E então? Trago um sapato da hospedeira no bolso. E então?