A pausa

Não são previsíveis mudanças essenciais. Aceita-se um rumo definitivo e não se imagina o que possa gerar perturbação. Ao alterar-se o batimento cardíaco esperas que o motivo não exceda o susto. Agradeces a estabilidade ainda que isso implique o fim da emoção. As emendas passam a ser pontuais, as condutas estão todas mais ou menos alinhadas umas com as outras e mesmo falar em plural, condutas, pode ser excessivo. Lembro-me do dia em que comecei a tomar boas decisões. Não o vou recordar agora. Esse momento merece uma atenção particular. Mas uma das boas decisões que tomei foi, simplesmente, ser prático. Era evidente que devia cortar com algo do meu passado porque isso me ajudaria a manter o controlo. No trabalho que me dava o sustento resolvi, por exemplo, encontrar o meu lugar. Fiz o correcto, gerei confiança em quem devia e num período de tempo mais curto do que era regra promoveram-me a motorista de um dos camiões do lixo. Para a dureza do trabalho, ainda assim, estive demasiado tempo como peão, o nome que damos a quem anda a pé, com o carrinho e a pá e a vassoura. Sabia que quanto mais cedo me habituasse menos resistência oporia e menos duro seria e foi isso que fiz. E então promoveram-me a motorista. Trabalhava todos os dias das 11 horas da noite às 6 horas da manhã. É de um desses turnos que quero falar. De uma dessas noites longas e frias mas também repletas de companheirismo.

Uma das razões que me permitiram ascender a motorista – penso – foi nunca me ter metido nos sindicatos. Não tenho sequer um carácter inconformista – e não o digo com orgulho. Uma das vitórias dos sindicatos foi conseguir uma pausa de 30 minutos a meio do turno, uma pausa oficial. A direcção aceitou impondo a condição única de que os horários de trabalho avançassem quinze minutos. E assim passamos todos a sair quinze minutos mais tarde. O pessoal dos camiões era fixo e eu trabalhava com dois colegas. Durante a pausa um deles tinha por hábito encontrar-se com outros companheiros escalados umas ruas mais a norte. Às vezes dava-lhe boleia e ficava o Carlos comigo, estacionávamos ao lado do depósito de água. Ligávamos o rádio e ficávamos ali a escutar as chamadas telefónicas que faziam ouvintes de um programa nocturno. Se não for por obrigação, não há muitos motivos que te levem a estar acordado às três da manhã em casa, e nenhum, decerto, chega a ser remotamente edificante. Algumas chamadas eram hilariantes e deixávamos quase sempre o rádio naquela emissora. Comentávamos as histórias e era realmente divertido. O Carlos punha as botas em cima do tabliê e descascava amendoins atirando as cascas pela janela.

Uma dessas noites apareceram uns miúdos. Não deviam ter muito menos que a idade do Carlos. Já os tinha visto ao longe: dois rapazes e duas raparigas. Empurravam-se, depois abraçavam-se, davam pontapés no que encontravam pela rua. Quando chegaram perto do camião começaram a apontar e um dos rapazes colocou-se exactamente à nossa frente, rindo-se, fazendo caretas, apertando o nariz e depois movendo a mesma mão diante da cara. O Carlos subiu o volume do rádio mas o rapaz não desistiu e os outros três, provavelmente pisando o monte de cascas de amendoins, riam-se desde o passeio. Por fim, o Carlos abriu a porta e de um salto desceu do camião. Eu segui-lhe o movimento e também desci. O rapaz estava agora em frente ao Carlos gesticulando e insultando-o com todo o tipo de apodos. Avançou um passo e o rapaz empurrou-o sem que Carlos oscilasse um só centímetro. Sabia que aquela pausa estava condenada e não me pude mexer. Carlos respondeu ao empurrão com um murro certeiro no peito e toda a força do impacto se concentrou no rosto do rapaz. Tinha lido algures que uma pancada no peito pode ser mais mortífera que na cabeça e foi nisso que pensei. O rapaz caiu ao chão e não mais se levantou, as raparigas arrojaram-se ao corpo inerte e gritaram. O segundo rapaz estava ao telefone tentando precisar o sítio onde nos encontrávamos. Enquanto Carlos desaparecia rua abaixo lembrei-me de alguns comentários que proferira ao escutarmos uma ou outra chamada telefónica. Parecia que ainda o estava a ouvir. Não os vou aqui lembrar; também os silenciei na altura do julgamento. A dada altura perguntaram-me se em alguma ocasião tinha sido necessário admoestar ou repreender Carlos. Respondi que não, nunca, e essa é a verdade absoluta. Não me passou pela cabeça duvidar um só momento do que conhecia, do que sabia do meu ex-colega. Talvez ele apenas não tivesse tido ainda a sorte de tomar as boas decisões. Talvez ainda fosse muito jovem. Desejei que todos nascêssemos ensinados. Desejei-o com fúria.