Dicionário de mitologia
/Conheci o cigano em circunstâncias inesperadas, uns meses antes de ele se tornar conhecido em toda a cidade pelos motivos mais infames. O episódio teve lugar numa altura em que eu ainda mal recuperara daquela que considero ter sido a semana fatídica da minha existência, os dias de todo o malogro. Nesse tempo, eu limitava-me a percorrer cabisbaixo o curto trajecto entre as minhas modestas águas-furtadas e o exíguo gabinete que partilhava no departamento. Aficionado que sou da mais lamechas autocomiseração, sentimento dos mais egoístas e egocêntricos a que pode entregar-se o ser humano, essa rotina de trabalho e reclusão adequava-se perfeitamente ao remorso triste que me dominava. Foi assim numa manhã de chuva intensa que fui dar com o cigano instalado no meu gabinete, sentado à minha secretária, absorvido na leitura de um livro. O cigano. Hão-de incomodar-se alguns com esta forma de tratamento, mas confesso não ocorrer-me agora o nome que mais tarde vi acompanhar a sua fotografia numa notícia de jornal. E naturalmente que eu também à altura não sabia que a figurinha respondia no submundo pelos epítetos de “o turco” ou “o urso”. Este último cognome sempre aliás me intrigou, tendo em conta o aspecto inofensivo e enfezado da personagem, embora tenha sido provavelmente bem melhor para mim jamais ter descoberto a razão da feroz alcunha.
A porta escancarada sugeria não estar a ser praticado qualquer delito de furto, ainda que não seja coisa pouca a invasão de espaços reservados. Perguntei-lhe o que estava ali a fazer e desde logo o cigano se revelou bem versado na arte de esquivar-se a perguntas, contrapondo com nova interrogação ou simplesmente, como no caso, avançando com informação não solicitada. “A porta estava aberta”, disse ele, “decidi esperar por si”. O meu colega jamais teria deixado o gabinete sem trancar a porta, por mais curto que fosse o período de ausência. Ainda assim, não constatei quaisquer sinais de arrombamento na fechadura. Lembrei ao ciganito que não podia simplesmente entrar em gabinetes privados, abertos ou não, e muito menos ficar ali como se estivesse em casa dele. Além disso (esta parte não verbalizei, pela habitual falta de fibra que me faz abster de confrontações excessivas), a roupagem andrajosa que envergava, molhada da chuva que lá fora caía, estava nitidamente a conspurcar a minha cadeira, de modo que já tudo me enojava naquela figura, cujo tipo eu me habituara a ver reproduzido nas feiras de rua ou às rédeas de uma carroça de burro. “À minha espera? Mas eu conheço-o? É estudante aqui na faculdade?” Contornando mais uma vez as minhas perguntas, o cigano fechou o livro e levantou-se da cadeira, avançando dois passos na minha direcção e lançando-me um olhar bem mais grave do que eu estava à espera, numa fascinante combinação de súplica e confidência. “A minha irmã precisa de ajuda, professor”. Esperei que desenvolvesse o assunto, mas o esperto do cigano quis certificar-se do meu interesse e atenção, obrigando-me a interpor qualquer coisa entre aquela frase introdutória e a apresentação do assunto. “Que tipo de ajuda? Quem é a sua irmã?”
Fazendo fé no sinuoso relato que então me foi apresentado, a irmã mais nova do cigano era considerada a estrela da comunidade, destacando-se das outras adolescentes pela beleza, inteligência e dedicação e ao trabalho. Cedo pais e irmãos mais velhos se tinham apercebido de que a cigana em causa não fora talhada para partos sucessivos e uma existência de dona de casa. A irmã terminara os estudos liceais com excelentes notas e, por conseguinte, com o apoio da família próxima e a desconfiança de vizinhos e conhecidos, candidatara-se com êxito ao curso superior de Direito. “O que ela queria era letras, coisas de histórias e livros”, acrescentara o irmão, “mas lá a convencemos a estudar qualquer coisa mais a sério”. Não obstante a minha formação académica, não pude opor nada àquele comentário nem à argumentação que o suportava: estando a família disposta ao sacrifício de sustentar os estudos da brilhante jovem, então pelo menos que esta estudasse alguma coisa que mais tarde pudesse ser útil para a comunidade e lhe garantisse a ela própria uma boa situação profissional. De início, tudo correra bastante bem, com a cigana a adaptar-se adequadamente à vida de estudante e à ausência da família. Partilhava com uma simpática moça do campo um quarto numa residência de estudantes e à sexta-feira à tarde lá percorria a quase centena de quilómetros que a separavam da casa paterna.
Vi o cigano voltar a sentar-se com os trajes imundos na minha cadeira, mas agora já sem aquela inicial confiança de quem tudo pode. Intuí, pela gravidade instalada, que começava agora a tirada menos solar da narrativa. A irmã engravidara ao segundo semestre. Não quis o jovem revelar-me a identidade do pai, opção que eu em silêncio agradeci, consciente dos malefícios que o excesso de informação sempre acarreta. A verdade é que a prodígia cigana se apaixonara, engravidara e fora brutalmente abandonada por um indivíduo aparentemente sem qualquer tipo de escrúpulos. “Um dos vossos”, acrescentara o cigano, com um olhar onde pude vislumbrar alguma ira. Senti que a desgraça em que caíra a pobre irmã lhe justificava mentalmente o tradicional pejo da comunidade em misturar-se com outras raças, outros ramos de gente. “Lamento o sucedido, a sério que sim”, disse-lhe, “mas não sei realmente porque me está a contar essa história toda. Não percebo como posso ajudar”. Levantando-se de novo da cadeira, contou-me o cigano que a irmã sofrera uns meses valentes, mais até pelo amor desiludido do que pela gravidez, que aliás cedo decidira interromper. Perdera o semestre, naturalmente, faltando a aulas e exames sem qualquer justificação. O verão ajudara-a a levantar a cabeça, a pôr ordem nas ideias e a recuperar o alento e determinação com que um ano antes iniciara os altos estudos. Mas estava complicado reinscrever-se. A matrícula fora cancelada e a universidade exigia agora avultada soma para aceitar de volta a aluna desertora. “Eu não confio nesta gente”, confessou-me o cigano, com um sorriso amargo seguido de longa pausa. “Mas você é estrangeiro, tem o coração mais aberto”. Não sei onde fora ele buscar tal ideia, mas se o objectivo era lisonjear-me não podia então ter dito melhor coisa. Taciturno que sou, sempre me agradou a ideia de ser visto como uma pessoa sensível e generosa. Por diligências e inquirições que melhor seria desconhecer, estava o cigano ao corrente da minha amizade com o vice-reitor, um gentil catedrático de quem eu me aproximara ao longo dos anos por motivo de um gosto comum pelo jogo do bridge e provas de vinhos a meio da tarde. Admito ter posteriormente investigado a situação administrativa da estudante em causa junto dos serviços académicos. E admito ter falado em confidência ao excelentíssimo vice-reitor a respeito do caso de que tomara involuntário conhecimento. Poderia ter simplesmente cruzado os braços e esquecido o assunto. Mas é que eu sou um fatalista, um crente profundo nas incidências do destino, e vislumbrei na visita do cigano uma oportunidade que a providência que oferecia para, por assim dizer, brilhar, para ajudar o próximo. Não se trata porém de boa formação cristã, é preciso dizê-lo. Apenas uma certa vaidade, o vício irresistível de me querer ver ao espelho com bons olhos. Declaro pela minha honra não ter recebido por isso qualquer contrapartida em dinheiro, géneros ou favores, apesar de o cigano me ter aflorado a questão em termos que dificilmente ousaria repetir. No que ao deve e haver diz respeito, devo aliás assinalar o desaparecimento de um livro da pequena biblioteca do gabinete, facto verificado após a visita da curiosa personagem.
Falo do Dicionário de Mitologia de Pierre Grimal, na tradução italiana editada pela Garzanti. Foi naturalmente o meu colega quem deu pela falta do grosso volume, não só porque lhe pertencia como também pela chocante lacuna que deixara na estante que humildemente partilhamos. Disse-lhe que não mexera ultimamente no livro e não fazia ideia onde efetivamente pudesse estar, embora esta última parte não fosse realmente verdade. Lembro-me de ver o largo tomo de capa preta e lombada laranja nas mãos do urso, ao entrar no gabinete, e depois de o ver de novo pousado na minha mesa. O estranho encontro, do qual o meu colega nunca veio a saber, terminara de forma emotiva. O cigano suplicara que lhe ajudasse a irmã, fazendo para tal uso do contacto privilegiado de que eu dispunha junto da reitoria. Pediu-me inclusivamente perdão pelo atrevimento da visita e assegurou-me, por outras que não estas palavras, não ter sido sua intenção intimidar-me ou colocar-me numa posição de excessivo desconforto. Depois teve sim a infeliz ideia de me abraçar, naquele que terá sido o momento mais constrangedor de todo o episódio. Recordo ter ficado com a camisa toda húmida e bafienta, mas sei que no fundo o turco quis apenas firmar assim uma qualquer espécie de compromisso, que eu no final também já não podia ignorar existir. Terá sido nessa altura que ele levou discretamente consigo o dito dicionário, cujo furto representou um duro atentado ao património bibliográfico do meu colega.
Isto foi em suma tudo o que pude dizer às autoridades policiais na sequência da detenção do cigano, pelas razões que são do conhecimento público. Bem me lembro do choque que foi ter sido visitado no departamento por dois agentes à civil, com o pedido, ou melhor dizendo, a recomendação clara que me deslocasse à esquadra para prestar declarações. É que nas buscas efectuadas ao domicílio do turco, à toca do urso (se me é permitido o gracejo), a polícia apreendera um bloco de notas onde o meu nome e posição constavam sob a rubrica de “bons contactos”. Sei que a promissora irmã logrou recuperar a sua matrícula na faculdade de Direito, e espero que à conta disso o bom do vice-reitor não venha a ter problemas de maior. O dicionário de mitologia não pôde ainda ser reposto, mas suponho que um dia destes eu ganhe coragem para visitar o cigano no centro de detenção, a fim de confirmar as minhas suspeitas de furto. Em todo o caso, parece ser da natureza da existência, mesmo nos seus incidentes mais corriqueiros, não poder nunca emendar-se por completo o que se subtrai à boa e tranquila ordem das coisas.