David Cronenberg E Rãs Transmutantes
/Foi preciso um sonho para compreender a tua coisa por sapos, Panero, apesar
De não ter percebido a transpiração irónica do recalcamento, depois de ter
Assassinado uma chinesa velha num salão de ópio, e sentir aquela culpa que é [medo
E ao mesmo tempo desejo de ser apanhado, ao estilo de Raskolnikov, se te [dissessem
Que doze anos passavam e tu ficavam quase na mesma, esmagado por tudo o [que
Entretanto deixaste para trás e te faz, mesmo que passado, não foram sapos,
Mas foram rãs, que não são o mesmo, não repugnam todos, tem algo de [erótico
Na silhueta e na forma como estão húmidas, não fosse o sangue frio,
À beira de um rio que apesar de não o ser, em Portugal, a erva alta,mas fresca
Como nos Verões nórdicos, e rãs armadas em gatos pretos, atravessando um [caminho
Sem destino, ao lado do rio, o rio sim, o mesmo onde o velho e o peixe, há [doze anos,
Quando te armavas em Bandini de dezoito anos aos dezasseis, centenas de [rãs,
De todos os tamanhos, de pernas bem torneadas em todo o comprimento no [ar,
Cruzando o teu espaço à distância temporal de um passo, umdeslumbramento [quântico,
Num entardecer de floresta com o Sol ainda violento entre as folhas e a [promessa
De uma Lua vermelha, ou amarela, as rãs, verdes, amarelas, verdes e amarelas, [azuis,
Vermelhas, todas apetitosas, estranhamente apetitosas e repugnadas pela
Minha intromissão no meu próprio sonho, cogumelos venenosos nos olhos,
Já a velha chinesa esquecida, nunca aconteceu, não nesta linha [electroencefalográfica,
Foi um sonho, isto sim, é, o reflexo demasiado distorcido de um dia abusado [pelo excesso
Dos olhos pela carne, ou da carne pelos olhos, numa clareira, uma exposição [de raras rãs,
Enormes, homúnculos em frascos e redomas de vidro, rãs transmutantes, [subitamente
Todas elas brinquedos antigos, a sorrir para um baú de sonhos partidos e [esquecidos
Debaixo de tanta página arrancada à vida, ao ler a descrição da espécie, [lembrei-me
De uma vez ver num Domingo de manhã, depois dos desenhos animados, [uma ave
Que reproduzia todos os sons que ouvia, mesmo os artificiais, uma máquina [fotográfica
Por exemplo, fez-se noite e tudo se tornou dentro, num divã, num quarto [pequeno e escuro
Em Moledo, a tornar-se grande à medida que a escuridão crescia, e o medo, a [morte,
A velha chinesa de volta, o medo tão grande, tão pesado quanto o vazio, [asfixiante,
Tem que se acordar para respirar, inspirar fundo o fumo tóxico da realidade
Para lavar as cirvunvoluções do excesso de serotonina e da culpa por defeito.
Turku
09.07.2014