The Killing e True Detective
/A série The Killing, Thriller com origens dinamarquesas (Forbrydelsen), passa actualmente em Portugal no canal FoxCrime, assenta numa racionalidade imbricada em pulsões independentes da “lógica da normalidade”, esses padrões comportamentais que parecem fazer previsões mais seguras sobre o nosso futuro do que as do Instituto de Meteorologia.
Estética: inverte as luminosidades apolíneas das séries mainstream da Fox, os dias são cinzentos, com uma chuva persistente, os interiores obscuros, os grandes planos não esbatem as sombras dos rostos, envelhecendo-os, por vezes num registo forçado. Os personagens principais (par heterossexual quase sem atracção libidinosa, dos actores Joel Kinnaman e Mirreille Enos), não revisitando especialmente os anti-heróis pícaros da história da ficção, vivem numa imperfeição deontológica que combina bem com o nosso imaginário dos cowboys solitários chamados a fazer justiça para lá da lei. Não há, ou há muito poucas cenas eróticas (uma das galinhas de ovos de ouro hollywoodescas); grandes, fantásticas perseguições; câmaras lentas intensificando o impacto do soco ou do tiro; edições sonoras para que o disparo de uma pistola pareça o de um canhão (quem já disparou uma arma, mesmo de calibre elevado, sabe que o som é quase ridiculamente inferior ao que ouvimos nos filmes). Apesar de algumas reviravoltas (a estafada “peripécia” das tragédias gregas), a linha argumentativa é bastante realista, quebrando com o abuso dos deuses ex machina, para se resolver, ultrapassando facilmente o verosímil, qualquer imbróglio, questão de épaté o espectador e fechar um suspense mal amanhado.
Uma série hidrófila, compreendendo que no inverso da luz, miúdas giras, rapazes atléticos e leais, paixões arrebatadoras, inteligências sobre-humanas a fechar investigações que pareciam conduzir a lado nenhum... enfim, nos antípodas de hábitos que vão formando espectadores pouco cerebrais, sem, contudo, cultivar o bizarro, à la Lars von Trier e, menos, David Linch, fez-se uma bela série (aperfeiçoada na versão americana), desenvolvida num campo dionisíaco profundamente cativante, porque mais próximo da vida enquanto produto biológico (como se costuma agora dizer).
True Detective, uma hermenêutica do sujeito e do mal
Descobri há pouco esta série (canal TVCine Séries, para os que continuam no Rectângulo, ou num site perto de si), primeira temporada de 2014, com Matthew McConaughey e Woody Harrelson nos papéis de dois polícias da Luisiana investigando estranhos homicídios. Escrita por Nic Pizzolatto (responsável por dois episódios de The Killing) e dirigida por Cary Jogi Fukunaga. Produção dos dois principais actores, argumentista e realizador, a que se junta Steve Golin e Richard Brown para a HBO (melhores audiências desde 2001, 9,3 no IMDb).
Cada temporada terá, dizem, uma nova história e um novo elenco. E talvez possamos começar por aqui, um desvio ao padrão “saga” que se instaurou em quase todos os produtos televisivos, orientados para o “grande público” ou para nichos de mercado (esses espectadores esquisitóides).
A estrutura desta temporada assenta na divisão da história em dois momentos cronológicos articulados: uma investigação sobre homicídios ritualistas em 1995 e uma investigação sobre essa investigação em 2012, já com os protagonistas fora da polícia. Este desdobramento, feito de flashbacks e longos solilóquios, dá densidade ao argumento, a meta-investigação complementa, aprofunda, enigmatiza..., tanto a primeira investigação como os personagens que a desenvolvem.
E se o formato do duo policial, com frequentes dissensos, não introduz qualquer novidade, já a personalidade e o discurso daquele que vem de fora da Luisiana (Rust Cohle/Matthew McConaughey) estabelece um campo de representação muito diferente do usual. À profundidade analítica junta-se um racionalismo amoral que só as suas insónias vêm perturbar, com delírios controlados que tanto o alienam da realidade como, no reverso, lhe permitem desvendar uma sobre-realidade que comanda parte do mundo. Rust, um pessimista irredutível, tem frases como “There’s a weight, and it’s got its fish hooks in your heart and your soul”, ou “There was other times I thought I was mainlining the secret truth of the universe.”
Este “moody, self-consciously wordy and obscurantist thriller”, como lhe chama o The New York Times, é, ainda segundo Alessandra Stanley, uma “ontologia mística” baseada na ideia que o mal governa o mundo. Mas é também um extraordinário poema visual decadente, filmando com precisão e abnegação lugares inóspitos colonizados por humanos tão desinteressados pela vida como pela morte. Mas que ainda assim se prendem ao orgânico, como se quisessem inscrever na sua biografia um último acto de coragem vital, e para isso convocam frequentemente a faculdade do juízo, marcando fronteiras rústicas entre o bem e o mal: “However illusory our identities are, we craft those identities by making value judgments. Everybody judges, all the time. Now, you got a problem with that, you’re living wrong.”