Pela água levará serras de fogo

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"A minha vingança seria conquistar o mundo", contei ao doutor. A minha vingança contra aquele tio que me esbofeteara, levando-me a correr, correr e a explodir no meio de uma vinha, esmagando cepas numa noite de cacimba, seria cravar uma bandeira na lua com o meu nome.  A vingança começara a meio da adolescência, com o êxodo rural e com a procura do homem novo através do cosmopolitismo e da universidade e dos livros e das mulheres vestidas com uma roupa de papel que se pudesse tirar à dentada. Seguiram-se o mestrado e o doutoramento e as bolsas e a escrita. Ter o que eles não tiveram, a obsessão por ter o que nenhum parente tinha tido, a vingança transformada em conquista do mundo. Contei ao doutor que o doutoramento não me chegava, que ser publicado por uma editora como a Penguin, sonho de uma vida, acabava por ser um sonho pequeno, pois a vingança só  se consumaria assim que estacasse a bandeira com o meu nome fora deste planeta. "Não tens condição social para vestir camisas". Que interessa o que diz um tio? O desejo de conquistar o mundo nascera em mim devido aos biqueiros com bota de cowboy envernizada desferidos por um parente com tiques de tirano. Confessei ao doutor que ainda desejava conquistar o mundo mas que aquela vontade de me vingar ia-se esfumando com o passar dos anos. Ouvir a história de um taxista octogenário que trabalha para pagar os tratamentos de uma filha a morrer de cancro não nos extinguem a dor — a nossa dor é egoísta, não se apaga. A nossa dor não se esfuma nem que vejamos alguém morrer à nossa frente. Sofremos por nós próprios mas o taxista comove-nos. Foi isto que disse ao doutor. Sofro por mim próprio. Perguntei-lhe se seria egoísta. Ele respondeu que era defensivo, não egoísta, e que por isso se tornava necessário percebermos quais as diferenças entre as vivências e as fantasias que faziam com que me custasse mais a suportar a dor no presente do que na altura em que existiam proibições como a toma de banho diária e em que os ratos guinchavam no sótão. Custa lidar com essas vivências, fantasias talvez, fantasias que requerem três buchas de venlafaxina e outras duas de um remédio que custa a lembrar por causa dos actos falhados, o outro remédio, o rivotril. "Qual o problema de ir trabalhar para a construção civil com doze anos?" É difícil responder a questões tão simples como as que o doutor me coloca. Fico boquiaberto, chocado com a auto-comiseração. E o doutor de olhos fechados, fingindo escutar-me com atenção ou dormitando, não ajuda vê-lo de olhos fechados ou de testa franzida ou trocando o meu nome por Pedro, sempre Pedro, como se eu tivesse cara de Pedro. Eu, um eu que vive fora do tempo e é o mundo inteiro desde que descolou como um míssil daquela aldeia. As respostas não existem, se existissem seria muito fácil evitar o caos, a desordem, o pânico ou os cortes nos pulsos. Há uns tempos, caminhava sozinho pela cidade vazia, recordava a mota de alta cilindrada do meu tio e o orgulho com que ele se exibia ao domingo, dia de calças levis, de blusão de cabedal e de voltinha pela terriola com a Kawasaki e a sua Carla de rabiosque gorducho. Caminhava sozinho e vi um homem atirar-se ao rio e afogar-se. Permaneci quieto, vendo-o afogar-se, assistindo à sua morte como se assistisse à minha morte ou à morte de algo no meu interior. “Qual a sua ideia de sucesso?” Esta questão do doutor foi-me posta dias depois de assistir ao suicídio do homem no rio. Parte de mim já não ambicionava chegar à lua. “Sonhar, dormir bem, aceitar-me para aceitar os outros, cuidar bem dos animais, amar a mulher, mostrar os dentes quando me apetece dar uma gargalhada”, respondi, sabendo que não tinha acertado na resposta, que não se acerta na resposta nestas coisas da psiquiatria, mas respondi pela primeira vez como se fosse uma criatura com os mesmos direitos das outras.