György Petri, Para alcançar um lugar ao sol
/Tradução de João Miguel Henriques et al.
Era uma noite de verão como as outras.
Eu andava de tasca em tasca.
Talvez estivesse a beber no Nylon,
ao lado da estação de comboios, junto à Ponte Margit
(ou será que a ponte já tinha sido demolida?). Não sei,
pode ser que andasse pela Praça Boráros.
Essas andanças duravam sempre
até de manhã ou mesmo dois dias,
e levavam-me a lugares sem nome.
Em todo o caso, estava sentado a beber num sítio qualquer.
(Naquele tempo eu ainda bebia de tudo, os jovens não são esquisitos.)
Ainda não me punha a ler nas tascas,
não, não, ainda não me enterrava
em livros e revistas, ainda não pregava os olhos ao tampo da mesa.
Ainda não ficava nervoso quando os outros falavam comigo.
“O que é que pagas?”, perguntou atrás de mim
a voz catarrosa de uma mulher. Era uma voz jovem.
“Peça lá”, respondi, voltando-me para ela. Nas minhas costas
estava uma mulher de mais ou menos cinquenta anos. Cabelos outrora
castanhos claros, gordurosos, colados à cabeça,
as gengivas arruinadas, os lábios gretados, os olhos
raiados de veias, de um azul marinho*,
camisola sintética branca amarelada,
calças castanhas, sapatos de praia encontrados no lixo.
Pediu uma mistura de álcool e uma imperial. Sem comentários.
“Estou aqui para uma nota de vinte”, disse. Fiquei surpreendido.
O preço era incrivelmente barato (já naquele tempo o era).
Eu conhecia os preços da Praça Rákóczi. Vinte forints não era preço que se visse.
A mulher não teria tido sucesso
na Praça Rákóczi, nem em qualquer outra praça.
Mais lógico seria ela pagar para ir para a cama.
Inclusivamente mais do que estava a pedir. Mas era isso que ela queria. “Anda lá,
apetece-me”, disse ela, “estou cheia de vontade.”
Nunca fui capaz de ofender a feminilidade de uma mulher
(só quando esse foi declaradamente o objectivo).
Mas neste caso… fui com ela; achei que tinha de ser.
É que nesse tempo sentia-me acossado e turvo
como lama revolvida e
apenas experimentava alguma falsa superioridade
nessas tascas e casas de pasto
entre os verdadeiros miseráveis da privação e desabrigo.
Arrastou-me durante muito tempo por uma rua longa, e depois abraçou-me.
Foi embaraçoso, mas faz parte do negócio.
Abracei-a também,
atracámos a uma cave, havia muitos degraus
para descer, a uma luz de origem
desconhecida.
A cama. Uma pocilga de peças encardidas de algodão.
Não se despiu, apenas baixou as calças.
“Era assim que eu fazia quando fodia atrás dos arbustos”,
Disse sem pejo. Por mim tudo bem.
Também tirei apenas as peças indispensáveis
e atirei o casaco para o chão. Mais vale sujo que amarrotado.
“Beija-me”. Tudo bem, era inevitável.
A boca cheirava a ranço, tinha os lábios escamados,
a língua e o céu da boca secos, como se a minha língua remexesse
numa lata de sardinhas vazia, para depois vir a cortar-se na borda afiada.
Fiquei com medo de logo vomitar na boca dela,
mas à conta disso apeteceu-me rir às gargalhadas,
com as lágrimas a derramarem-se sobre a sua grossa pele, até
eu conseguir dominar os movimentos peristálticos. Entre pernas,
era estreita e seca. Pouco se alargava e em caso algum ficaria molhada.
“Espera”, disse ela, e com os dedos esgravatou
numa margarina aberta. Esfregou-se lá por dentro,
uma e outra vez.
“Também vais comer daqui?”
“Há algum sítio onde possa lavar-me”, perguntei mais tarde.
Apontou para a ponta de um cano. A água esguichou
e fiquei com as calças cheias de lama, como se me tivesse mijado todo.
“Faz parte”, murmurei. Ainda tinha uma nota
de cinquenta. Ela abanou a cabeça: “Disse que era vinte,
o preço não é esse. O que eu mesmo preciso
é de uma nota de vinte”. “Então dá-me troco”, respondi,
“não vês que não tenho vinte?” “És estúpido ou quê?”,
disse ela. “Se pudesse dar troco de cinquenta,
é porque não precisava da tua nota de vinte”, disse logicamente.
E no momento seguinte ficou com a boca aberta.
Encolhi os ombros (“se és assim tão orgulhosa”),
Meti a nota de cinquenta no bolso, apanhei o casaco
e subi as escadas às cegas.
Para alcançar um lugar ao sol,
onde o fato bege e a camisa branca resplandeçam,
por degraus entalhados rumo à limpeza,
aí, onde o vento silva, a espuma branca crepita,
numa absolvição lúgubre, numa recriminação indiferente,
degraus de náusea, subcaves que recusam consumir-se,
madrugada de verão, mil novecentos e sessenta e um.
*Que disparate. Tu é que tens os olhos azuis marinhos.
Os dela? Sei lá.
Como água sulfurosa numa banheira.
Só queria oferecer qualquer coisa a esta criatura desafortunada,
como por exemplo a cor dos teus olhos, uma palavra rara,
para ela não ficar tão repugnantemente lastimável
e eu parecer mais inteligível.
György Petri (1943-2000) nasceu em Budapeste, onde estudou Filosofia e Literatura, sem porém ter completado o curso. Entre 1975 e 1988, os seus poemas foram considerados “politicamente inaceitáveis”, devido à atividade do poeta na oposição democrática. Petri foi editor do jornal subversivo Beszélő e também, já depois da queda do muro, do jornal Holmi. Recebeu vários prémios literários pelos seus volumes de poesia, entre os quais o prémio Attila József em 1990 e o prémio Kossuth em 1996. Três dos seus poemários foram publicados através do samizdat, prática de edição e distribuição clandestina de livros e outros bens culturais que haviam sido proibidos pelos governos dos partidos comunistas nos países do bloco de leste.
Nota
Em maio de 2012, professores e alunos dos cursos de catalão, espanhol e português da Universidade de Szeged (Hungria) reuniram-se durante três dias na Casa Húngara dos Tradutores, a Casa Lipták, na cidade de Balatonfüred. Aí, na companhia de dois poetas e tradutores convidados, leram, discutiram e traduziram para as referidas línguas poemas de três autores húngaros da segunda metade do século XX. Um desses poetas foi György Petri e este é o resultado desse trabalho, dirigido pelo poeta e Leitor da Universidade de Szeged João Miguel Henriques, no que foi secundado pelos seus alunos Róbert Antal, Sára Czérnay, Gergő Hajzer, Kata Kosiczky, Eszter Mólnar, Barbara Szöllősi e Vera Lacsán.