Onde é que eu começo?
/Dick Whitman é criado por um bando de prostitutas. Cresce com as perversões sexuais das prostitutas e dos seus clientes. Espreita pelo buraco da fechadura e aprende como se faz, como se trata uma mulher. Descobre qual o valor de uma mulher. O mesmo que pechisbeque. Uma mulher não vale mais, não quando não há uma mãe ou quando se ouve dizer que se está ali por favor. Um homem que não tenha uma mulher a quem chamar mãe não tem direito a existir, esta é uma fantasia possível. Chamar mãe a todas por não ter tido nenhuma. Tratar qualquer uma como lixo por ter sido amamentado num bordel. Whitman defende-se do mundo imitando aquilo que vê. A vítima vira perpetradora. Um dia, tem a oportunidade de ser outro: na Guerra da Coreia, uma criatura chamada Don Draper morre à sua frente. Mestre da astúcia, aproveita para vestir a pele do falecido. O novo Don Draper é bonito, conquistador, um príncipe. Ascende com rapidez numa grande empresa. Bebe e fuma imenso, casa-se, descasa-se, casa-se novamente. Fornica sem parança, as mulheres não lhe interessam, nada lhe interessa para além do eu que não encontra o verdadeiro eu. Um egoísmo que apaga o mundo. O seu medo não é ser descoberto, embora pense que é esse o seu medo. Quando alguém descobre a sua real identidade, Draper/Whitman resolve o problema com desembaraço. O real medo de Draper é o medo de qualquer ser humano: não se conseguir deslindar do passado. É um horror carregar o peso de duas pessoas. Agir como um Whitman mascarado: um carroceiro preso a uma gravata. À medida que os episódios de Mad Men se sucedem, ficamos com a certeza de que Don Draper é uma criatura aprisionada, mais incapaz do que os restantes mortais de se libertar das suas fantasias. Nenhuma mulher o satisfaz. Mãe há só uma e, para mal dos nossos pecados, não a podemos escolher. Nem sequer podemos escolher ficar ou não com os nossos pais. São eles que nos decidem abandonar. Draper não se resigna, dorme com esta e com aquela, chega ao topo, funda novas empresas. Os tropeções, pois. Tendendo para a impulsividade, o solitário tropeça mais vezes do que quem nasceu com tudo mas, tal como os cães rafeiros, desenvolve capacidades que lhe permitem sobreviver. Draper não suporta a farsa ou o peso de ter nascido outro. Apesar de apreciar o luxo, o conforto e a sua posição social, fica mais feliz quando tenta fugir da pessoa que é. A sua maior alegria é pensar que poderá fugir para outro lado e apresentar-se como um Whitman recauchutado, rico, renascido. Em Nova Iorque pensa em fugir para LA e vice-versa. Este indivíduo não chora. Chora uma vez, quando recebe a notícia da morte da sua melhor amiga, da única amiga que o conhecia como Dick Whitman. A morte dessa mulher é a morte de um pedaço de si próprio. Whitman começou por querer ser Draper mas agora que é Draper só quer ser livre, livre pela primeira vez. Já provou a riqueza e as mulheres e o mundo que na infância julgara destinar-se a outros. Mudar de nome ou de cidade ou de mulher não esbate o vazio. O que impele Whitman a transformar-se em Draper é o desejo do pobre de ser rico, do anónimo de ser reconhecido. Procurar um sentido para a vida. É aqui que cai o castelo do príncipe: não há um sentido. Don Draper não é amado da maneira que gostaria. Não se ama e por esse motivo ninguém o ama, ninguém o suporta (é o próprio que não se suporta). Voltar a ser a criança que não se chegou a ser, eis uma boa frase para a personagem. Muitos não tiveram a infância desejada. Podemos escolher as mulheres, as casas, os carros. Não escolhemos os pais. Somos obrigados a viver com isso. Podemos procurar um sentido ou uma razão ou várias razões que expliquem o nosso sofrimento actual, mas não queremos explicações, queremos ser felizes, compreender a vida e ser felizes. Chegamos a um ponto em que concluímos que o esforço empreendido na construção do super-homem resultou num enorme fiasco e desejamos ardentemente voltar à infância, tapar os buracos depressivos escavados por nós e por aqueles que nos rodeavam. A história da nossa ascensão mistura-se com a história da nossa depressão.