Cultura de massas vs. de classe (cinéma de Cannes)
/Título de um artigo do Le Figaro: “Festival de Cannes: Cinéma, de la culture de masse à la culture de classe”.
Cannes é ainda um festival onde o cinema de autor respira sem se intoxicar com as apreciações rasteiras da indústria cinematográfica (grandes estúdios e produtores, mas também, parasitando e sendo parasitado, o público mainstream, gosto médio inclinado para os efeitos especiais, uma erótica básica, violência justiceira, perseguições velozes… tudo rematado num happy end soprado por um deus ex machina).
Mas há um certo risco nesta resistência à banalização, inscrito no título do jornal: que para fugir à cultura de massas se radicalize a cultura de classe. Com intensidades diferentes, a Palme d’or não distingue apenas o experimentalismo e a erudição estéticas, por exemplo Pulp Fiction ou The Piano, filmes de que gosto muito, são patchworks desenvolvidos em cima de muito do cinema de fim de semana.
A solução não é simples, sem uma certa selectividade cai-se no banal, sem uma certa banalização fica-se no elitismo estéril. Há uma dialéctica boa que é preciso alimentar: aumentar a complexidade formal, poética e técnica das obras mas deixando linhas de fuga para os horizontes de expectativa mais rudimentares. Passar do “cimo” ao “baixo” e do “baixo” ao “cimo”, horizontalizar tendencialmente o que se produz. Massificar um pouco a cultura de classe e classificar a de massas. Acabar com os compartimentos estanques que, também na arte, criam condomínios fechados habitados em exclusividade.
Mas fique claro que não se trata, ainda que camufladamente, de um novo Realismo Estético, da arte ao serviço da “revolução proletária”. A arte é suficientemente revolucionária por si mesma, não precisa, nem deve, servir qualquer causa extrínseca. Mas precisamente, se a sua função, além de embelezar o mundo (e haverá algo melhor do que o belo?), é a de mudar formas de estar e apreciar o mundo, transformar os códigos de intersubjetividade, projectar utopias que questionem os statu quo ante… Numa palavra, se ela existe para instabilizar o que parecia fixo, então tem de ser o mais geral possível, abrir poros comunicativos entre diferentes campos: classes sociais, profissionais, nacionalidades, regionalidades, géneros, idades, ideologias… A arte produzindo forças que entrelaçam o que parecia irredutivelmente separado, a arte como catalisador comunicativo sem, contudo, se massificar.
Os meus Palme d’or preferidos (não os vi a todos):
Taxi Driver/Martin Scorsese
Apocalypse Now/Francis Ford Coppola
Paris, Texas/Wim Wenders
Sex, Lies, and Videotape/Steven Soderberg
Dancer in the Dark/Lars von Trier
Elefante/Gus van Sant