SKIN DEEP

    Só por cansaço ou embutimento dos sentidos tomamos por “natural” o nosso lugar  no mundo ou inserção no relevo da paisagem. Basta uma brisa de vento agitar a vida própria dos átomos e dos seus micro-organismos, todo o invisível material que está lá, no espaço, para termos a percepção de como as coisas giram sobre si mesmas, englobando-nos, sem contemplações, no seu devir eufórico-trágico indiferente e, podemo-lo dizer, imundo.

    Assim, a estrada obcessiva, iluminada pelos faróis de Karma Police , o parque de caravanas, isolado, de Street Spirit (clips de Glazer para os Radiohead), ou, aqui, o lugar ermo da costa da Escócia onde alguém, um checo, diz encontrar-se porque procura um lugar “fora de tudo (“nowhere”), constituem não-lugares  da mesma ordem, e com as mesmas propriedades (anónimas e anómalas), daqueles que percorre aleatoriamente o personagem-alien  de Under the Skin (um ser sem nome ou determinação sexual), ele próprio “formação”= “figura” do “lugar-nenhum” de onde vem o filme  de Jonathan

 

Glazer, dando forma e corpo a uma conhecida tese de Serge Daney: “Le cinéma n’a plus d’autre spécifité que celle d’acueillir des images qui ne sont pas faites pour lui”.

    No personagem de Scarlett Johansson (uma versão feroz e voraz do alien personificado por David Bowie em The Man who fell to earth de Nicolas Roeg [1976]) [link A]), encontramos sinais de uma constante desadequação, impropriedade, da relação com o corpo que, afinal, é também a nossa. Será o corpo o “estranho” em nós – uma espécie de alien de 2º grau, teodolito caído do espaço a que damos a cobertura  de uma aparência que atenua, torna suportável (vivível?) a sua radical “estranheza” ( a “estranheza” do orgânico, dessa semente do cosmos de que somos os portadores [Lucrécio]) – ou somos nós o “estranho” nele, o elemento invasivo (um vírus, infecção da matéria) que vem parasitar o seu funcionamento?

 

    Com efeito, debaixo da pele = película, do personagem ou do filme, o que se encontra?      

    Quando Scarlett Johansson começa a retirar a pele que a cobre temos a percepção de que, debaixo dela tanto se pode encontrar o vazio ( e então ela pode abrir para o espaço sideral, o nada), como a  substância negra, não impressionada (virgem de impressões, sensações, figuras), do “negativo” do próprio filme. Uma matéria (substância) negra, maleável, moldável, mas sem atributos, especificações (qualidades) que é, como se diz, a do “sonho” e a do cinema.

 

    O desajuste do “alien” em relação ao (seu?) corpo (“ O cinema não reproduz corpos, ele produ-los com grãos, que são grãos de tempo”, afirma Deleuze numa entrevista aos Cahiers du Cinema nº 380, 1986) [link B] é, afinal, o das imagens de cinema em relação ao seu “destino”(fatalidade) figurativo e narrativo. Quando o processo devia ser o inverso (aquele que, com desigual sorte, aqui ensaia o alien): o que conduz do negro/ vazio original à  alucinação da imagem ou à  hiperestesia (hipnótica, siderante [vd. sequência na discoteca]) das (des)conexões (sinapses) dos neurónios e sentidos em sintonia com uma concepção de cinema (vida) como Ipad, ecrã de simulação e de interacção virtual/ real (“O cérebro é o ecrã”/ “o cinema não introduz só movimento na imagem, ele introdu-lo também no cérebro”, observa Deleuze na mesma entrevista).

    Under the skin confronta-nos, assim, com uma ideia de cinema (que o autor vem desenvolvendo dos clips musicais e anúncios de publicidade aos seus filmes: Sexy Beast [2000] e Birth [2004]), ela própria dada entre a abstracção (vd. as atmosferas monocro-máticas, bolhas de descompressão do real=gravidade, a branco ou negro,que constituem também espaços kubrickeanos de suspensão formal que Glazer já evocara em clips como The Universal, dos Blur [Clockward Orange], e Karmacoma, dos Massive Attack [Shinning]) e, continuamos, o máximo de sensorialidade  da fotografia suja e húmida de um microrealismo do quotidiano e do pormenor (urbanos) que conhecemos do cinema inglês (muitas vezes local, regional) que vem desde os anos 80 e 90 ( vd. Chris Bernard, A Letter to Brezhnev [1987], Alan Clark, Rita, Sue and Bob too [1987], Mike Leigh, Naked [1993], Lynne Ramsay, Morvern Callar[2002], entre outros).

    De tão “próximo”, o real torna-se “estranho” (“estranheza” de que aqui o “homem-elefante”, vindo de Lynch, pode ser a “figura”) ou mesmo “estrangeiro”, como se checos, albaneses, eslavos, porque tomam o “real” por baixo, aquém ou à margem da representação, se tornassem os “herdeiros” desse mínimo (denso) de real, das coisas e sensações,  aquém da linguagem e dos conceitos, a resgatar (Kracauer) pelo cinema.

 

    Essa experiência= via das sensações= sentidos, é aquela por que passa o alien do filme. Uma via, experiência, que, como com o cinema, se irradia e transmuta em hipersensibilidade, abstracção sensível, transportando-nos das determinações locais dos corpos e do espaço – através de um processo de indeterminação para o qual muito contribui o som, aqui, devido ao carácter electrónico das instalações sonoras, tanto menos uma dimensão (porque lhe falta “expressividade” figurativa / narrativa) como uma 3D da imagem (ele é, em certa medida, o coração/ centro pulsante do filme que sustém, do princípio ao fim, esse efeito de irradiação “sensurround” abstractizante) – para, sim, a sua dissipação (infra ou ultrasensível) no Tempo (“A  imagem, em si mesma, é um conjunto de relações temporais […].As relações de tempo nunca são vistas na percepção comum mas elas podem ser vistas na imagem […]. A imagem torna as relações de tempo […] sensíveis e visíveis”, precisa ainda Deleuze [para uma versão em inglês do texto cf. Gregory Flaxman (ed), The Brain is the screen – Deleuze and the Philosophy of cinema, University of Minnesota Press, 2000 [365/ 373]).

    Daí que, apesar das conexões com Kubrick, o percurso do filme de Glazer nos pareça muito diferente (desse ponto de vista, ele encontra-se mais próximo da sequência com o corpo na morgue de Eyes wide shut do que de 2001- A Space Odity – aqui não há “osso” que sirva de suporte material/ físico à Alegoria): passando, na abertura, dos flashes de luz à imagem do olho, personagem e filme, depois de percorrerem (e testarem) a alego-

ria sensível das suas diversas figurações (tentativas de corporização= figuração por adopção das “imagens” do mundo [vd. cena de “não-relação” sexual, já perto do fim]), desintegram-se e dissipam-se de novo em som-tempo e luz-energia (cósmicos), ou seja, no cristalino diáfano da própria matéria= substância luminosa- corpuscular (agora não “negra” mas “revelada”) do Cinema.

 

 

Link A:

    Como o próprio Roeg esclarece, o filme trabalha sobre situações de uma dupla estranheza que advém da colocação de um alien (extraterrestre ou cidadão inglês) num cenário e paisagem também eles “estranhos” (seja o deserto do Novo México ou a flatness icónica da cultura americana).

    No entanto, à opacidade (negra) e ao excesso (pulsional= sensorial) do universo de Under the Skin  contrapõe-se aqui a virtualização do real nos ambientes hiper-mediáticos ( e mediatizados) das instalações de aparelhos de TV construídas pelo alien (“o que me interessa é a energia, a transferência de energia”, afirma): assim, esse aquário de imagens, a banda-sonora (com segmentos de música electrónica que evocam os Pink Floyd da altura e anunciam o Bowie de Station to Station e, sobretudo, Low [discos em cujas capas se reproduzem fotogramas do filme]), ou mesmo a abertura do espaço exterior (o deserto), constituem a substância oca, o vazio a preencher de matéria (com água, informação ou imagens) para que se fixe, sedimente algo, haja, por assim dizer, real (que será também sempre “alienígena”, localizado, como nostalgia: utopia, num universo diferente).

 

    Pela mesma razão, no filme, as imagens de si no espelho, ou as dos outros enquanto espelho (Mary Lou e o alien, Thomas Jerome Newton, como o andrógino um do outro), nada fixam a não ser o espaço entre elas, a dobradiça do dispositivo de reflexão/ figuração criado, o cinema. Em Under the skin, contudo, é o excesso de opacidade (negro) do corpo (que refere a opacidade interna do seu funcionamento: o duplo enigma do desejo e da carne) que absorve (mastiga e cospe), na sua densidade: espessura (inumanas) qual-quer imagem.

 

Link  B

    É curioso constatar como Scarlett Johansson tem dado corpo e voz a estas experiências sobre “figuração do imaterial” no cinema.

    Deste ponto de vista, Under the Skin tem semelhanças, ao mesmo tempo que é como que o seu inverso, com Her de Spike Jonze.

    Em Her era pela Voz – o mais abstracto e não figurativo, embora figural – que se procurava produzir: projectar – e no melhor dos ecrãs: o cérebro do personagem/ espectador – o corpo de sensações que constitui o simulacro imaginário-real da atmosfera sonora do “fantasma” da rede/ computador (e, claro, da ideia-imagem, no nosso banco 

Scarlett-Johansson-Voices-The-Most-Advanced-Operating-System-in-the-World.png

de dados, da actriz); em Under the Skin, contudo, a via é a do invólucro (película: cobertura) do corpo para a constelação sensível (astral,cósmica) que nele, pelas suas “presas”, se procura encarnar (só o “homem-elefante”, homólogo figural do “alien”, se  salva).

   O corpo e a voz, hipersensuais, de Scarlett Johansson – assim como a relação de acordo: conveniência que entre eles parece haver e que ambos os filmes desconstroem para a testar e, em última análise, refundar – funcionam aqui como uma verdadeira antena de sensações, lugar (passional e em certa medida “sacrificial”) da precipitação: condensação e depois irradiação do real. Ou seja, no sentido pleno do termo, uma imagem.