O tempo que se vai não volta mais

Era muito, muito novo quando pela primeira vez me senti abandonado. Tenho alguma dificuldade em definir abandono. Recordo-me de, com escassos meses de vida, estar a chorar nos braços de alguém, talvez da avó levada pelo cancro, com medo de que a minha mãe não voltasse para mim. Associei quase desde espermatozoide a palavra abandono ao receio de ficar à mercê da cruel natureza. Fiz a escola primária no campo, mas antes de chegar ao campo experienciei inúmeras aventuras, infelizmente, quase nenhuma agradável. Passei os meus dois ou três primeiros anos de existência nos subúrbios de Lisboa, em casa do meu avô paterno, um viúvo vaidoso e egoísta. Reza a lenda que o meu avô cortou relações comigo por não ter apreciado uma camisa às riscas por ele oferecida. Rejeitei vestir a dita camisa para agradar à minha mãe, que naquela altura tinha deixado de falar com o velho. Ainda hoje me apetece conhecer melhor o homem, pena que tenha morrido. Aos quatro anos a minha mãe abandonou o meu pai adolescente, crónico adolescente, em casa do velho caturra. Instalámo-nos numa pensão rasca localizada numa vila marítima. A sala, o quarto e a cozinha comprimiam-se em cerca de dez metros quadrados e a casa de banho era frequentada por todos os hóspedes. Aí me senti abandonado como nunca antes. A minha mãe trabalhava num café e à noite num bar. Eu ficava sozinho, saía e chegava à pensão quando me apetecia. Chegava depois da meia-noite. Passava fome. Nunca me esquecerei do sabor da fome, da desesperança que se abatia sobre mim por não poder comer um prato de comida, por não poder beber um copo de água. Um dia acordei em pânico e saltei para a rua de pijama, faminto e gritando pela mamã. O abandono equivalia a não ter quem me amparasse. Foram tempos duros em que roubava de tudo, desde comida a brinquedos. A minha mãe nunca me fez um pequeno-almoço, nem me penteou. Recordo-me disso agora. Inscreveram-me um dia num infantário e mais do que uma vez lá se esqueceram de mim. Vinham buscar-me depois da hora de jantar. As freiras que geriam o infantário diziam que seria bem tratado no orfanato para o qual me levariam. Via a minha mãe e a minha tia com muitos, com namorados a mais, muitos deles casados, e também comecei a desejar  mulheres. Juntei moedas e pedi em casamento duas mulheres que trabalhavam numa agência de viagens. Tinha erecções. Via a minha mãe e a minha tia nuas e tinha erecções. O meu pai aparecia muito raramente, oferecendo-me uns cromos como presente. Buscando conforto material, a minha mãe juntou-se a um homem que lhe batia, o vira-latas, como lhe chamava. O vira-latas não me bateu mas bateu na minha mãe e partiu o nariz à minha tia. O vira-latas atropelou uma menina. Eu ia no carro e vi, apavorado, uma menina morta enfiada numa valeta. Cheguei à aldeia para a escola primária. Em vez de voltar para casa da minha avó, a minha mãe decidiu ir para casa de uma senhora que explorava um bar que não era bem um bar mas um sítio de engate, uma espécie de bordel. A minha mãe trabalhava lá como uma espécie de menina para todo o serviço. Os homens que a engatavam apelidavam-me de filho. Num tom de gozo e enquanto passavam a mão pelas pernas da minha mãe, minha bêbeda mãe. Fazia cenas de ciúmes, querendo captar a atenção dela, mas dela ouvia meros “cala-te”, “vai chatear outra”, “procura meninos da tua idade”. Que meninos da minha idade se encontrava em locais como aquele? Cheguei cansado à escola primária, não tinha qualquer vontade de ficar sentado várias horas no mesmo sítio. Queria fazer o que me apetecia: andar atrás da minha mãe. Preocupava-me com ela. Era um suplício estar na escola e não saber dela. Poderia acontecer-lhe algum acidente, poderiam bater-lhe, poderia estampar o carro. Abandono era pensar que a minha mãe poderia desaparecer. Temi sempre o seu desaparecimento e um dia desapareceu mesmo. Não ter direito, não tens direito a pertencer, a perguntar, a vestir como os outros. A certo ponto interiorizei estas mentiras ou ficções. A sorte batia à porta alheia. A felicidade não existia. A nossa, a minha missão no planeta consistia em suportar um caos asfixiante, em trepar uma escadaria de dores cada vez mais lancinantes. Andar de bicicleta libertava-me da frustração de estar encurralado numa aldeia agarrado às promessas de uma mãe que tardava em assumir o papel de cuidadora. Pedalava até não aguentar mais, pedalava e arfava, afirmava não aguento mais, trepava aquelas ladeiras e não aguento mais. Aprende-se que se aguenta um pouco mais se o esforço não nos matar. Pedalava para fora da aldeia, perseguia sonhos que piscavam e se apagavam como pirilampos. Pedalava tardes a fio, lanchava uvas roubadas. Ia à praia de bicicleta e ainda jogava à bola com amigos ou sozinho - preferia jogar sozinho, entretinha-me mais fazendo o relato das minhas próprias jogadas. A minha mãe não estava, poucas vezes a via. Abandono significava silêncio, o cri-cri dos grilos, o uivar dos cães à noite, o barulho das janelas que batiam com a força do vento. Abandono significava não ter acesso a luxos maiores do que um pão com manteiga ou um copo de água ou, vá lá, um iogurte de morango. Abandono era não ter mãe, não passear de carro ao domingo, não ter possibilidade de tomar banho todos os dias. Ninguém, és ninguém, ouvia, não podes beber sumo, não podes isto, nem aquilo. Perdi o direito de existir. Perguntar algo a alguém ainda é um terror. Começo com um “posso perguntar-lhe” quando outros começam logo com a questão. Pedir licença para existir, como se alguém me fosse recriminar ou dizer que não tenho direito a perguntar o que pergunto, a ser como sou ou como quero ser.