Vai ferir noutra parte
/Ainda sonho. Contou ao amigo. Ainda tenho sonhos por realizar. O amigo descascava uma laranja. Desejo encontrar uma mulher que me ame a valer. O amigo cuspiu os caroços da laranja e perguntou se nos Açores não existiam mulheres que lhe interessassem. Nenhuma me prendeu. O amigo apelidou-o de saudosista, disse tens saudades daquilo que não viveste, aproveita o presente. Quero ter um filho. Fez-se silêncio durante um bom bocado. Quem me dera apaixonar-me por uma mulher e engravidá-la. O amigo espreguiçou-se, calçou as botas enlameadas, saiu à rua e voltou com uma caixa metálica. Aqui estão as nossas poupanças, disse, leva-as contigo para a civilização, púbere companheiro, o dinheiro não me fez, nem me fará feliz, talvez te ajude a realizar o sonho, a comprar uma mulher. Atirou-lhe as notas à cara e sentou-se carrancudo. Fizeram as pazes com uma garrafa de bagaço e umas trocas de murros. Cada animal brinca como sabe e aqueles dois brincavam aos bêbedos pugilistas, cuspindo sangue, trocando abraços a saberem a sovaco. Ainda sonho com o amor de uma mulher, murmurava, enquanto enchia o oceano de urina, e idealizava essa mulher enquanto perseguia o amigo que lhe urinara nas calças. Os dois mergulharam no mar da meia-noite. Mijaste-me em cima, charuto de picar. Gargalhadas no escuro e o vento soprando forte. Amigos para sempre. Mulheres para quê se nos temos um ao outro, se ter um amigo a sério é melhor do que chorar pelos carinhos de uma mulher? Vamos caçar uma baleia. A esta hora. Que baleia? Uma baleia gorducha, no bar. Uma açoreana de bigode. Dormimos os dois com a gorda. Entraram cambaleantes no bar de alterne e pegaram na mulher mais anafada e feia que encontraram. Encheram-na de notas, despejaram-lhe as poupanças em cima, com bagaço e sémen à mistura, e riram, riram, que se danem o dinheiro e as mulheres, somos felizes assim. A gorda apaixonou-se pelos dois e chorou tanto ao vê-los partir que quase afundou a ilha. É a primeira vez que vejo duas bestas destas, dois garranos. Os amigos dormiram agarrados como irmãos que eram e no dia seguinte acordaram cheios de vontade de fazer tudo outra vez, e então voltaram à praia e correram e nadaram nus e pegaram na gorducha e entregaram-se de corpo e alma ao prazer. Engravidaram a gorda, que teve os filhos sem saber quem era o pai. A criança tinha dois pais e uma mãe e assim seria até à morte. A gorda emagreceu, ficou graciosa com os anos, ser amada por dois homens fazia-lhe bem. Ter duas pessoas é como estar no meio do mar, sendo arrastada para a frente e para trás, mantendo o domínio e simultaneamente sentindo a força, pensava, amestrei dois cavalos e perco-me nas ondas. Um dos amigos levantou-se numa madrugada enevoada e entrou sozinho no mar, repetia ainda sonho, afundava-se e dizia que ainda se lembrava do verão com a menina morena e morreu.