Selfies em caleidoscópio
/Para a Tatiana Faia, que sabe selfiar bem
Voltemos às selfies, “auto-retratos”, como lhe chama um amigo meu, querendo esquivar-se à banalidade. No Verão, as redes sociais regurgitam de gestos narcísicos, o culto do eu redobra de vigor em período de férias. Da praia à viagem no estrangeiro, da esplanada ao concerto musical, do museu à caminhada na montanha... aumentam exponencialmente os cenários que emolduram a ouro a figuração pessoal. Os críticos, especialistas da negatividade, caem em cima desta avalanche de eus em pose, transbordando de felicidade; deplorando a esterilidade das partilhas egocentradas e as paradas exibicionistas, revelam, a partir do seu tribunal de costumes, os sintomas de decadência civilizacional no umbiguismo fotografado.
Mas em boa verdade, de Montaigne a Proust, de Thomas Mann a Robert Musil, de Fernando Pessoa a Friedrich Nietzsche, de Van Gogh a Goya... foi através de linhas de desenvolvimento partindo do sujeito que se produziram algumas das obras de arte mais universais. Neste sentido, não é tanto o número incomensurável das exibições que nos deve preocupar, mas a sua monotonia. O problema está mais no mimetismo dos gestos e textos que os enquadram do que na quantidade de selfies. A partilha de si só é desinteressante quando não introduz um pequeno fragmento de novidade, não acrescenta nada ao que já existe, não desbarata o hábito.
Por isso, em vez de se condenarem apressadamente as redes sociais digitais (Facebook, Twitter, Instagram...) – cai-se normalmente aí –, numa mistura paradoxal de intelectualismo progressista e reaccionário, talvez se deva pensar melhor, sobretudo mais livremente, retirando dos factos conclusões menos... estéreis. Parece-me que os avatares circulando pela Webesfera são principalmente, nos casos menos infantis, formas de des-subjectivação, dão a ver, ouvir, ler... como outros os originais. As selfies não fixam necessariamente o “eu”, são desenhos complexos do “si”, outras personagens que, apesar das ligações, se afastam das origens antropológicas do baptismo; à semelhança dos dispositivos heteronómicos. Nas redes sociais, o “eu” parece afastar-se da sua própria realidade e inventar uma projecção de si, que tanto pode ser narcísica (a normalidade) como experimental, irónica, fantasista, poética... Por outro lado, a multiplicação exponencial de eus carentes de elogios fáceis e imediatos faz com que um narciso se confunda com todos os outros, tornando-se irrelevante (a não ser para o pequeno círculo de conhecidos, a que de qualquer modo teria acesso).
Para me pôr agora do lado dos críticos: este campo de futilidade selfiesta prevalece sobre os restantes, e desvirtua a boa comunicação. Já que em vez de a usar na autodescoberta e envio de pretextos para os receptores investigarem melhor a sua personalidade caleidoscópica, o faz para se camuflar e insuflar, mostrando-se nos paraísos efabulados que tem à mão e acha socialmente prestigiantes. Mas nenhum eu tem de se transformar num objecto genérico, as férias não têm de parecer um desfile de selfies cor-de-rosa. Vamos, mais um esforço para que cada vida se transforme numa obra de arte.