A partir de Jean-Luc Godard

Uma rara entrevista de Jean-Luc Godard (3 filmes na interessante Lista Scorcese) ao Le Monde (10 de Junho de 2014) para falar de cinema e outras minudências. Reproduzo as highlights e pratico algumas derrapagens e suplementações, prolongando e desconstruindo sentidos.

1- Individualismo: o cinema é o único sítio onde 15, 20, 100 pessoas poderiam decidir fazer as coisas de outra forma. [a emancipação do indivíduo passa então da filosofia e da política, ou do álcool e outros psicotrópicos, para o cinema]

2- Pretensa célula Godard: irrealismo, talvez a Nouvelle Vague, num curto período de tempo, tenha sido vagamente isso. Três indivíduos, Truffaut, Godard e Rivette, três rapazes que tinham abandonado a família. [a explosão artística só se consegue fugindo de papa/maman, das resmas de valores morais que preenchem inteiramente a casa familiar]

3- Paixão pelo ténis: praticou-o muito, em Paris a sério entre 1946-47, depois abandonou. Mas é o único campo onde alguém nos reenvia a bola. [desporto para intelectuais, pois. Mas também exemplo de uma ética da discussão: reenviar a bola, a mesma bola, ao adversário, não se desculpar, tergiversar, vitimizar...]

4- Comunicar com o silêncio: cita Bresson, Notes sur le cinématographe, para destacar uma frase: “Está seguro de teres esgotado tudo o que se comunica através da imobilidade do silêncio”. [é tempo de nos calarmos, ou de falarmos menos. O homem do futuro será mudo]

5- Cannes? “Ça n’existe plus”. [esta semana vi La vie d’Adèle, e Cannes ressuscitou]

6- Pode deixar-se uma parte ao azar? Totalmente. [uma parte e meia]

7- Método? Não, trabalho. [para o bem ou para o mal? A velha ética do trabalho tem 7 vidas]

8- Bill Viola? Detesta, é só cenário, texto escrito posto em imagens, por vezes brilhante. [fico-me pelo “brilhante”]

9- Entusiasmam-no alguns realizadores? Não conhece 9 em cada 10. Três quartos dos filmes são óbvios. [um pouco mais]

10- Só há livro a pôr dentro dos livros: o cinema é um esquecimento da realidade (cinema dentro de cinema), mas o esquecimento pode também conduzir à realidade. Maurice Blanchot dizia “Esse belo recordar que é o esquecimento”. [paradoxo: o que está além do sentido enfadonho. O secreto Blanchot é um deus ex machina]

11- Andy Warhol: gostou dele quando fez um filme de três dias sobre comer e dormir. [inspiração para o MasterChef?]

 

[Godard em auto-irrisão, a dar pistas escorregadias para tentarmos descobrir um pouco de génio no meio da vulgaridade (antes temos de saber se ainda somos capazes de “engendrar uma estrela dançante” em nós). Ele também vulgar, por vezes, como se viesse respirar vida para depois fazer mais um mergulho e não se afogar no mar da criatividade por falta de normalidade]