Entrevista a um génio incompreendido
/Latagão. É o que se me ocorre mal vejo este artista multi-facetado. Um génio dotado de um fantástico corpanzil, preso a uma camisa preta de tamanho S e sugando cigarrinhos slim. Tudo em torno deste homem parece pequeno. Os seus próprios livros diminuem duas estrelas em todas as secções de escrita cultural da nação perante o génio do autor. O longo cabelo corrido só acrescenta um charme a uma voz fina mas não feminina, fina porque poética, fina mas ao mesmo tempo arrebatadora, de um timbre pronto a inspirar multidões. O génio não tem muito tempo para entrevistas. Não por acaso, esta é a primeira que concede na vida. Avisada que estava pela sua prestimosa companheira de que não gostava de ser interrompido durante o processo criativo, foi com receio que apliquei três pancadinhas na porta da sala. “Entre”, ouvi, e logo fiquei rendida. Estava apaixonada.
Por que motivo está a montar uma estante e não a escrever?
A criatividade não se restringe à escrita. Sou dramaturgo, poeta, editor, romancista, palrador, jogral e ainda empresário (não gosto da palavra manager) de bandas de música close to the heart, em Portugal injustamente apelidadas de pimba. Passo dias a fio encerrado nesta sala. Esperava que ficasse oito, doze horas a escrever? A fazer teses de doutoramento? Não. Um artista deve contribuir para a sociedade. O meu contributo é vasto. O meu curriculum é conhecido e fala por mim. O verdadeiro artista deve afirmar-se como um homem da renascença. Firmar créditos em diferentes áreas da produção artística (neste ponto o génio segura o martelo com firmeza e pronuncia grave e lentamente:) e nada é alheio à minha produção artística.
Mas não imaginava apanhá-lo de martelo na mão.
Por isso não é artista, falta-lhe imaginação. Adoro surpreender. Às vezes, a minha mulher chega a casa e espanta-se. Diz: “Quiduxo, mudaste a casa toda.” Viro a casa do avesso. Entretenho-me a montar armários, estantes. Lixo, passo tapa-poros e envernizo portas. Um mestre. Não querendo ser imodesto, julgo que se nota um certo tom eclético na minha obra. Passo de uma estrutura formal clássica a uma mais experimental num piscar de olhos. E não só ao nível da forma. Veja os temas sobre os quais me debruço. Tanto aparece um professor preocupado com as grandes questões do ensino, como um viajante europeu enclausurado num tempo de alienação, feito de linhas eléctricas, de comunicações incomunicáveis elaboradas a partir de fios já sem fios, de cores e trovões imperceptíveis à vista desarmada.
O que pode um homem sozinho?
Mudar o mundo. Ou vá, pelo menos criar o meu, perdão, o seu próprio raio de acção. O raio de acção sanciona, ou devia sancionar, o direito do artista de viver da escrita. O artista é heroico, menina, expõe-se aos trovões, aos raios e mesmo até às borrascas para iluminar o povo. (Neste ponto a cinza do cigarro do génio cai sobre a mesa, ele prontamente pede-me que segure no cigarro e delicadamente segurando no copo de whisky varre a cinza para dentro do copo quase vazio, erguendo a cabeça e brindando-me com um esgar determinado.) É por isso que me sacrifico pela humanidade todos os dias, com a minha escrita, a minha actividade de editor, dramaturgo, aqui fechado nesta sala. O artista sacrifica-se, menina. Mesmo quando foi a feira de bric-à-brac de Cantanhede, eu gostava de ter ido. Mas um artista tem de se sacrificar (o génio levanta a voz), não é quiduxa? (A mulher do génio não responde.) Ainda hei-de ser uma espécie de best-seller dos escritores subterrâneos. Um Herberto Helder da prosa. Quero ser uma testa enrugada que fale mais do que um livro. Não sei se me entende. Tenho este problema de estar à frente do meu tempo. E o meu espírito de sacrifício incompreendido, que brota do meu amor à arte e à humanidade. (Sacando de outro martelo de debaixo da mesa, ergue-se de repente e martela dois pregos que estavam salientes na estante ao lado dele.)
Quando percebeu que estava à frente do seu tempo?
Em Budapeste, quando vi um táxi capotar à minha frente. Pensei que se Deus não me matava era porque me queria para uma missão. Nessa noite, enfiei-me no hotel a escrever. Escrevi, escrevi, bebi, fumei, escrevi, escrevi. Quer saber? Aquela obra-prima chamada Cabos de Tensão foi escrita numa única noite. Nessa noite em Budapeste (sorrindo de orgulho, penteia-se com aqueles dedos grossos e irresistíveis que transformam qualquer cigarrinho num palito). Foi aí que percebi que a humanidade é sacrifício.
Acusam-no, por vezes, de ser hermético. O que tem a dizer sobre isso?
Acusam o Cristiano Ronaldo de ser individualista. O que tem ele a dizer sobre isso? Ganha duas Bolas de Ouro. O que tenho eu a dizer sobre o hermetismo? Que um dia, quando morrer, darão valor aos meus escritos. Podem não apreciar agora, mas surgirão gerações que me venerarão, que compreenderão a minha essência, a essência do meu sacrifício. Para além da existência há uma essência que vagueia por aí, como essa incomunicabilidade que nos sufoca até ao tutano. Não sabia desta, pois não? (bate com o martelo na estante e sorri desbragadamente). Agora ainda não me dão o devido valor. Felizmente, a minha mulher sabe que sou um génio. Quando eu desmoralizo, é ela quem me repete que sou avant la lettre. Não é, quiduxa? (A mulher não responde, lá de dentro ouve-se o bater de tachos.) Hermético? O meu génio não é hermético, mas não pode ser inteiramente compreendido por este tempo doente e apocalíptico a que o meu génio é sensível. E do qual precisa para escrever. Assim, numa sociedade que não me entende (a Penha de França não é Brooklyn) não tenho outro remédio senão expressar-me em todos os meios que tenho ao meu dispor. E depois o hermético sou eu?
Fale-nos do seu novo projecto.
O meu novo projecto irá combinar o meu amor à arte, o meu espírito de sacrifício, as capacidades do meu intelecto renascentista e a minha paixão pela bricolage e pelo bric-à-brac. Influenciado por uma estética brechtiana e beckettiana, mas também pela minha experiência de professor do ensino secundário em Massamá, estou a dedicar-me a escrever o guião para um filme, que será realizado por mim, e em que a personagem principal, Vasco António, um professor de liceu que vive num subúrbio desolado pós-era industrial, em meados de 2055, sozinho na sua sala, medita na possibilidade do amor num tempo alienado em que os media dominam todas as relações entre os seres humanos. Um estranho toca à porta. Há um longo diálogo. Ambos desmontam uma estante, atiram os livros pela janela e começam a construir uma mesa. Qual é a opinião da menina?
Confesso que me soa, não sei como dizer-lhe, vagamente chato. Sobretudo a parte do longo diálogo.
Desculpe interromper, mas como é que a menina se atreve? A minha meditação metafórica sobre o valor do sacrifício e da humanidade? É um tema importante e sério. Se não houvesse intelectuais como eu, dispostos a sacrificarem-se pela humanidade para a iluminar, o que seria da humanidade? Você diria isso ao Miguel Ângelo quando ele estava lá pendurado de pincel na mão na capela Sistina, que lhe soa chato? Olhe que aquelas acrobacias não lhe hão-de ter feito nada bem às cruzes. Para cima e para baixo, de um lado para o outro, tudo na vertical. Isto é o que eu penso sempre que me ocorre o Miguel Ângelo entretido com a Sistina. Quem se preocupa com as cruzes do Miguel Ângelo? É então este o valor que dá ao meu sacrifício?
Neste ponto, o génio, no seu tamanho de latagão, aproxima-se ameaçadoramente da câmara, segura firmemente o martelo, e fita com gravidade melancólica a câmara apagada.
Espere, vou ler-lhe um excerto do guião.
O génio sai da sala. Há um estrondo de livros a cair no chão. Uma porta bate. Alguém dá uma joelhada na parede. Vejo-me obrigada a pôr fim à entrevista saindo com alguma pressa pela janela.