A lebre na barriga

Quando fugi da colina sem o aviso prévio dos 15 dias, sem dar um ciao aos animais 

o homem do monte, aliado à Liga dos Direitos dos Bichos 

pôs a polícia no meu encalço por abandono premeditado. 

Desse modo, antes de mergulhar no doce anonimato da cidade, tive de mudar algumas das minhas características pessoais. Para começar, não que isso interesse, tornei-me platinada e mudei de nome. 

No centro de emprego onde me desloquei perguntaram-me o que sabia fazer,  

olhar e escutar, venho do campo, acrescentei envergonhada. 

Não havia nada para quem chega do campo e sabe olhar e escutar, falaram-me da crise. 

Imaginava lá que a crise era argumento, na colina, no campo é sempre crise, não há fins-de-semana, há sempre o que fazer, todos os dias são luta pela sobrevivência. 

Aí ela lembrou-se: tenho vidros para lavar se achar que pode usar os braços,  

eu achava e usei-os tão bem que me recomendou a outras senhoras. 

Pagam-me em arroz e embalagens de comida que sobram dos jantares que dão. 

Nada me atinge. 

Boas senhoras, oferecem-me por pura gentileza, para além do pagamento que me é devido, outro suplementar e afogam-me em écharpes de seda coloridas azuis verdes laranjas estampadas 

a minha saudade traduz: asas de colibri borboleta bico de lacre 

lavo com elas os vidros. 

Quando me encontro pensativa e me interrogo sobre o tão famigerado sentido da vida sinto uma coisa na barriga aos pulos, mas logo passa 

quem comeu a companheira das caminhadas não tem nada que pensar. 

 

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