Na minha dor que corre

 Um homem tenta conhecer-se.

 Um homem tenta conhecer-se.

Pavorosos foram estes meses em que, imerso em analgésicos e aflito por não debelar uma contínua sensação de fraqueza, representei o papel de fantasma solitário a zanzar pela cidade enxameada de turistas. O médico prescreveu-me exercício físico, descanso, vitaminas e, o mais importante, felicidade, ou melhor, momentos de prazer e alegria, como os proporcionados pelo acasalamento ou pelas bebedeiras entre amigos. Se do exercício resultaram entorses, distensões e uma perna partida, do resto sobram imagens retalhadas em que eu, centro deste drama sem conteúdo, surjo estendido na cama, agarrado a sacos de gelo, ligaduras e a chávenas de chá de limão com mel. Recolhido ao leito na esperança de desligar durante seis ou sete ininterruptas horas, de renascer no dia seguinte, deste modo passei parte do meu verão, deste longuíssimo inferno começado em abril e ainda não terminado. Comenta uma vizinha viúva que nos habituamos a qualquer coisa, desde a morte das pessoas amadas à doença. Acostumamo-nos a ser corpo presente, arrastamo-nos para o interior do atufado eléctrico, indiferentes às apalpadelas dos carteiristas, aos encontrões de matulões alemães ou aos insultos disparados por senhoras reformadas, convencidas de que, sob a égide do Professor Doutor Oliveira Salazar, a pátria respirava civilidade. Até o coxo se habitua a ser coxo, garante a viúva, esquecida do seu choro nocturno, dos seus histéricos protestos contra o triste suicídio por enforcamento do marido. Ontem a febre e a perda de olfacto, hoje os desmaios e a vista turva. Amanhã o quê?, pergunta-se o homem sufocado por dores inesperadas, a cada manhã renovadas, como se ao questionar a sua situação fosse escutado por uma entidade maior, paternal, dotada do poder de acabar com as patifarias perpetradas por uma natureza injusta. Que será de mim amanhã?  Maldizendo a existência, arrependido de ter fomentado a ambição de contrariar um destino desde sempre agressivo, que farei para além de me focar na amargura? Acomode-se ao padecimento, nota a viúva, antes de um suspiro que acentua o carácter fatalista do seu pensar.  Semanas a fio de desatino e ansiedade despencaram numa incapacidade de reagir. Assuma-se coxo, assuma que pelo menos da alma coxeia, aconselha a viúva, desgrenhada, sempre montada no seu pijama. Enfurecido contra este destino em que por momentos acreditei, farto das frases desconexas caídas em cadernos deixados no caixote do lixo, sento-me com o intuito de escrever algo mais longo e compacto, algo com principio e fim. Abraço o dicionário, como se estivesse a abraçar a língua perdida, como se me abraçasse a mim mesmo, e garatujo, contente por ainda não ter morrido, um monte de palavras mal alinhadas, um texto defeituoso, o texto que aqui se apresenta, e respiro, aliviado, não por me ter libertado da dor. Por me reaproximar das fantasias que para mim criei.