Costa e Kiarostami: o respeito pelo real

 por Tiago J. Silva

 Estabelecer pontos de contacto e factores de aproximação entre as obras de Abbas Kiarostami e Pedro Costa é tarefa que ocupa não só os críticos mas também, e não raramente, os próprios realizadores, que tecem considerações sobre estas possíveis inter-relações. A movimentação num universo cinematográfico que partilha inúmeras semelhanças éticas e estéticas não passa despercebida aos programadores de cinema mais atentos — recorde-se, por exemplo, a certeira rentrée da Cinemateca Portuguesa em Setembro de 2013, que conjugou o lançamento do livro O Caderno de Casa de Lava com a antestreia nacional de Like Someone in Love, projectando em conjunto ambos os filmes. Enquanto Costa é um dos mais proeminentes herdeiros de um projecto ambicioso de docuficção fortemente influenciado pelos ensinamentos de António Reis, Kiarostami reclama para si próprio a árdua tarefa de realizar um cinema realista sustentado no seio de uma cultura iconófoba, em que a função da imagem assume sempre um carácter problemático. Com formações culturais e profissionais diametralmente opostas, os cineastas encontram-se na sua interpretação singular dos pressupostos do cinéma vérité

Ao invés de se focarem numa mera construção ficcional, fantasiosa e desprovida de sentido político dos elementos do filme, ambos se propõem realizar a tarefa de intervir, por intermédio da ficção, na realidade que se desenrola fora da sala de cinema — e se esta «é um filme mal realizado» (Godard), o que Kiarostami e Costa tentam fazer é corrigir essa mesma realidade. A forma como Close-Up se encontra estruturado parece corroborar esta teoria. O reenactment de todo o julgamento do homem que ludibriou uma família fazendo-se passar pelo realizador Mohsen Makhmalbaf é apresentado de forma eminentemente original, já que o espectador não se encontra perante actores que representam papéis e que tentam reconstruir de modo dramático a situação mas antes os indivíduos que realmente a viveram, podendo assim exibir o mais fiel dos retratos. Mas Kiarostami, habituado a subverter as noções de representação da imagem cinematográfica, vai ainda mais longe no seu propósito neo-realista e não se limita ao comentário da realidade — reconfigura-a e complexifica as suas particularidades. Há uma imposição da hiper-realidade nos vários níveis de ficcionalidade do filme que o tornam numa sucessão de simulacros, no sentido que Jean Baudrillard lhes confere, ao mesmo tempo que se verifica uma necessidade de revelar os meios pelo qual as imagens são produzidas, como no final de Taste of Cherry. Os acontecimentos que tiveram lugar antes da rodagem do filme e aqueles que só são proporcionados pela sua própria existência entrelaçam-se e Close-Up oferece a visão de ambos, criando esse «terraço sobre outra coisa ainda» de que Pessoa falava em Isto.

Taste of Cherry, Abbas Kiarostami, 1997

Taste of Cherry, Abbas Kiarostami, 1997

Pela convivência no set entre as pessoas daquela família e o aparente criminoso, os ressentimentos por parte dos primeiros desapareceram para possibilitar uma coexistência pacífica — estes, que não haviam compreendido as motivações de Hossain aquando do seu crime e castigo, percebem-nas por intermédio do filme de Kiarostami, o que remete, neste caso específico, para uma dimensão reparadora do cinema. Em Close-Up, a reconciliação é feita pelo próprio filme, algo que só é possível pelo respeito com que Kiarostami filma aquilo que capta a atenção do seu olhar e pela dimensão ética desse mesmo olhar, oferecendo as coisas não necessariamente como elas são mas como deveriam ser. É importante que se compreenda que isto não faz de Kiarostami, no entanto, um produtor de imagens idealizadas, pois estas «não são nem simbólicas nem imaginárias», como frisa Jean-Luc Nancy em L'évidence du film, mas antes abertas ao acaso e ao acidental. São eye-opening films, não só para o espectador como para aqueles que estão envolvidos na realização do mesmo.

No cinema de Pedro Costa, é frequente observar uma tendência semelhante, tanto pelas características formais dos seus filmes como pelo propósito social e profundamente transformador pelo qual se regem. Como Kiarostami, procura sobretudo devolver algo às pessoas que filma através do cinema. Analisando concretamente os casos de No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha, monumentos da Trilogia das Fontainhas (que é agora uma tetralogia, se o objecto belíssimo e inqualificável que é Cavalo Dinheiro puder ser enquadrado neste ciclo), torna-se evidente que não podem ser apenas encarados como registos documentais da vida de figuras como Vanda ou Ventura. Costa introduz a ficção nos quadros da vida diária não como tentativa de tornar os seus filmes mais narrativos, num sentido tradicional e redutor do termo, mas como uma forma de entrecruzar hibridamente o real e a ficção. Existe uma sequência única em Juventude em Marcha que exemplifica por si só esta linha de raciocínio, sem necessidade de qualquer teorização que não a que já se encontra no próprio filme — os filmes de Costa, como as peças de Brecht, contêm em si próprios enquanto objectos artísticos a tese que se propõem a demonstrar. Nela, Ventura, de aura épico-heróica pelo recurso quase constante ao contre-plongée, entra sorrateiramente na Fundação Calouste Gulbenkian numa noite cerrada. O plano seguinte, por estar incluído numa montagem que se orienta por uma espécie de caos controlado, «explode» e atinge o espectador com uma violência incalculável: Ventura ao lado de um quadro de Rubens, Fuga para o Egipto, revelado em todo o seu esplendor barroco e heráldico.

Cavalo Dinheiro, Pedro Costa, 2014

Cavalo Dinheiro, Pedro Costa, 2014

Recorde-se que até aqui, mergulhado numa atmosfera de arte povera, o filme se orientou sempre pela construção de ambientes fechados e claustrofóbicos (que se viriam a tornar autêntica matéria do imaginário em Cavalo Dinheiro, pelo recurso à abstracção) que constituem um microcosmos em que o horror ao vazio caracteriza o desespero e pobreza da vida das personagens. Numa das conversas que decorrem nestes espaços, Ventura recorda os tempos de operário e a construção da Gulbenkian, onde agora está impossibilitado de entrar. Para James Quandt, é uma «bofetada visual e tonal». Passa-se do mais degradante para o mais sublime, e o que Costa exibe enquanto statement é que a arte não pertence só aos que frequentam os museus mas também a quem os edificou — aqueles que mais precisam dela. O passado de Ventura é, aliás, aprofundado em Cavalo Dinheiro, uma digressão pelos lugares mais dantescos da sua memória provocada pela descida inicial em direcção à escuridão, que permite compreender que esta reconfiguração do real não se manifesta enquanto forma de mascarar a realidade mas como demonstração do abismo evidente entre a expectativa e o acontecimento efectivo — neste caso, o olhar sobre uma revolução que atormenta aqueles que deveria proteger. Através de Juventude em Marcha, as personagens do bairro social, com os seus dramas, anseios, sonhos e problemas (de existência real bem definida), são imortalizadas na película e recuperam o papel da arte nas suas vidas. Abre-se a possibilidade de recuperar, pelo cinema, uma existência negada pelo real — como Proust e o fascínio desmedido pela natureza, de importância fundamental na À la recherche du temps perdu mas incompatível com a sua asma crónica. 

Também em No Quarto da Vanda esta reconfiguração do real tem lugar: aquando da repentina morte de Geny, habitante de longa data do bairro, Pango e Vanda fazem uma espécie de elogio fúnebre extraordinariamente sóbrio e racional. Tendo em conta que todo o filme é apresentado como um documentário com escassos elementos ficcionais, o espectador é constantemente confrontado com a realidade dos acontecimentos e, porventura, estranhará a falta de resposta sentimental por parte de dois indivíduos tão próximos da pessoa falecida. Na verdade, Costa filmou a cena até que a reacção captada fosse sóbria e contida, impossibilitando o espectador de participar emocionalmente na acção e criando um efeito de distanciamento brechtiano. Respeitar a dor daqueles que se filma e negar um conhecimento prepotente ao espectador: eis a verdadeira definição de um cinema ético e preocupado com o olhar. E Costa e Kiarostami sabem olhar como ninguém.