Com novas vitórias venceria a fama antiga

 Três, quatro chávenas cheias, por mais que me encharcasse de café,  a boca deslizava para a latrina e o corpo pesado aguentava viagens não superiores à distância entre o vale dos lençóis e a casa de banho. O café afugenta o sono e limpa o sangue do meio litro de bagaço vertido em garganta a profetizar a regurgitação, eis o que me contaram certa vez com tamanha confiança que nem tentei comprovar, a não ser através de múltiplas carraspanas, a veracidade deste pedaço de sabedoria. Claro que é mentira, os amigos mentem-nos e isso entristece-me tanto que desconfio que não é boa ideia conciliar a vida com o pensamento ou conciliar o sentimento com o pensamento. Nem com seis cafés o macho alfa, semi-gorila, latagão daqueles de levantar barras de ferro de cento e tal quilos para cima, abre a pestana para bulir. Sentei-me para trabalhar, se considerarmos trabalho a escrita de três parágrafos de duzentas palavras, e encostei a testa ao tempo da mesa e, mal a pele contactou com a madeira, adormeci. Sonhei que entrava num portal do tempo que me transportava de volta a mil novecentos e noventa e nove, para um tempo em que o meu passatempo preferido consistia em educar-me para a vida adulta, roçando-me em ninfetas de traseiro nutrido que me entregavam a língua e me auxiliavam na tarefa de olvidar (momentaneamente) que em casa (qual casa?) me aguardavam o ávido vazio e gente repleta de não quero saber, não me interessa, estás na idade de trabalhar, dás mais gasto do que proveito. O vazio pintava-me as olheiras de preto, destruía a minha melhor parte, a que sorria, com guinchos de rato e paredes de pedra caiadas, bolorentas e repassadas de humidade. Mil novecentos e noventa e nove virou fumaça, o calendário mostra o dia vinte e seis de Março de dois mil e quinze, vinte e sete, oito, não tocamos em tempo algum, vivemos múltiplos sonhos, como aquele que me levou para a boca da gorda das pastilhas de morango girando em torno da sua e da minha língua. Mil nove nove nove, ano em que se iniciaram as paixões avassaladoras por meninas anafadas, de buço descolorado por água oxigenada, e as erecções de quatro, seis horas que originavam as piores dores. Ano em que o acabou, a partir de hoje seremos apenas amigos trovejado pela Raquel me deixou na lama, tão na lama que até ao virar do século, até ao dia da minha morte, só me enamorei por decalques da dita - ainda me comove dizer o nome - Raquelita. Pastiche aqui e ali, os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo rabiosque, como descrevê-lo, meio metro de largura, algo estratosférico. Duas nádegas giganteas, dignas de adensarem o acne daqueles que nem com um dedo lhes tinham tocado e daqueles que, já lhes tendo tocado, nunca mais as veriam. Sonhei longas horas com aquele ano e com a Raquel, até que fui despertado pela Raquel, não pela mesma Raquel finissecular mas por outra igualmente bem alimentada, de cabelo preto liso a dar pelo cóccix, como a crina de um cavalo. Outra cópia. A minha história é circular. Conheço mulheres parecidas umas com as outras, bebo a mesma bebida todas as noites, bagaço e moeda de cinquenta chapada no balcão, vivo nos mesmos caixotes de papelão cobertos por estuque a que dão o nome de estúdio remodelado em zona histórica, escrevo o mesmo livro, publiquei sete e disto não passo. Deus largou-me nesta terra e esqueceu-me. Ontem enfiei-me num táxi e o taxista não reparou em mim, apenas quando falei, uns dez minutos depois, o homem se virou para trás com cara de fantasma e perguntou para onde queria ir, e respondi para lado nenhum, ele aumentou o volume do rádio e, sonolentos, deixámo-nos levar para outros sonhos, outros mil novecentos e noventa e nove.