A carta

 Um qualquer dia/ de qualquer mês/ de qualquer ano

           

            A um leitor,

            Esta cidade podia ter um qualquer nome, podia até nem existir. A sua capital é a nossa, não conhece os confins que limitam o mundo. Aliás, posso garantidamente dizer que o mundo habita aqui, não me sinto daqui ou de acolá, mas sim, pedindo licença ao grego mestre, cidadão do mundo, e talvez por esta razão não me é estrangeira. Na verdade, sinto-me como se nunca tivesse saído de casa, não que isso signifique a completa ausência de novidade, há-la aqui e em abundância, seja em que província for; refiro-me à inusitada sensação de familiaridade ao saltar, digamos desta maneira para bem ilustrar, de uma página para a outra. Se fosse possível reunir todas as cidades do mundo numa só, seria este o local. Não me peçam que a localize no mapa, por favor, seria uma perda de tempo, todos vós lá estivestes.

            Podemos em cada região contemplar exemplos sublimes de arquitectura, maravilhas de  engenharia, belas articulações de palavras; podemos misturar-nos nas rumorosas avenidas ou fecundar o sossego de uma viela, abrigar-nos sob as copas das árvores de jardins frondosos de cores de Outono, ou perder-nos nas ruas em descuido e decadência rodeadas de prédios abandonados onde os brados morrem e se sentem as preces de piedade e boa vontade, ou pode acontecer que nos percamos no mais obscuro beco que a nossa imaginação ouse recriar. Afinal de contas, uma cidade não é feita de turismo, não é feita apenas do belo que ofusca o obscuro, muito menos uma plural em cidades como esta. 

           Há, sobretudo, que saber distinguir o turista do habitante, este último, se aguçarmos os nossos dotes de observação, revela a sua verdadeira identidade pela familiaridade com que olha para tudo o que compõe a cidade, para um monumento, por exemplo, como se o saudasse, passada já a condição de forasteiro com que inicialmente aqui se entra, num acto preambular de introdução, e uma vez ultrapassadas as cortesias ali nos deixamos ficar em diálogo, no silêncio que nos conta sobre as pedras de que também somos feitos.

            Nem seria oportuno discorrer sobre os costumes da população, pois note-se que o único hábito verdadeiramente consueto é a alternância do quotidiano conforme o visitante, coisa que parece aplicar-se às próprias ruas, históricas ou novas, aos parques viçosos ou aos bares de eleição que transmigram alegremente a sua existência para outra morada; imagine-se que encontrei o Bar Utopia cinco quarteirões depois do lugar que me fora indicado, e a Praça Calípole ao fundo da rua à esquerda, chegando à encruzilhada, e não à direita. As paredes desta grande metrópole estão recheadas de testemunhos deste tipo, autênticas margens de apontamentos e reflexões de toda a natureza. Quem visita esta cidade fá-lo geralmente sozinho, porém, ainda que acompanhado, a urbe estender-se-á para cada um consoante o modo com que os olhos absorvem a paisagem tingida, que se erguerá com o orto do sol a Este para um, e a Oeste para o outro.

            Os aspirantes a futuras viagens sintam-se perdidos, sem rumo, não importa para onde vão desde que saibam que todos os caminhos vão dar além de Roma. Existem uns tantos que conduzem até cidades inexistentes, com mais população do que aquela que ousamos imaginar, onde melhor e livremente somos errantes a cores através de preto estampado no branco.