Os Donos do 25 de Abril

Depois do 25 de Abril de 1974 surgiu, à boa maneira portuguesa, mais uma clivagem entre puros e impuros: os primeiros “estavam com o povo”  (Forças Armadas, Operários e Camponeses, todos em processo de proletarização, mesmo os energúmenos que lá habitavam); os segundos “estavam contra o povo” (devotos do antigo regime mas também cépticos moderados). Aqueles eram “progressistas”, estes “reaccionários, uns pretendiam que a História (providencial) avançasse, outros que parasse ou regredisse. Mas não bastava esta polarização, distinguia pouco os que se auto-intitulavam Heróis da Revolução. Passou então, estranhamente em mais uma variável capitalista, a haver os donos do 25 do Abril. Não que o dissessem literalmente, mas esse era, e é, o sentido que se retirava do ódio que nutriam por quem não participava no seu coro. A célebre expressão “onde estavas no 25 de Abril?”, queria, e quer, dizer: “não estavas lá (ideologicamente), logo ele não te pertence, não podes tomar posse dele”.

Na ressaca do Maio 68 alguns pensadores franceses socorreram-se de Immanuel Kant para lembrar que as revoluções pertencem mais aos “espectadores” do que aos “fazedores”. Michel Foucault, por exemplo, cruza O Conflito das Faculdades com o Was ist Aufklärung de Kant para realçar, em sintonia com a sua teoria do poder não institucional ou soberanista, a desvalorização kantiana da parte mais ruidosa e grandiosa da Revolução Francesa. Para Kant, o seu valor “rememorativo, demonstrativo, e de prognóstico não é o próprio drama revolucionário, não são os feitos revolucionários, nem a gesticulação que os acompanha.” Mas a forma como foi acolhida pelos “espectadores”, que não participando directamente se deixaram arrebatar por ela. A leitura de Foucault, muito próxima do texto kantiano, sublinha que o processo revolucionário, com os seus actores e energia extremas, não é a causa do “progresso constante da humanidade”. Noutros termos: não são as revoluções em si que causam o progresso, mas o entusiasmo que geram nos espectadores, porque esse entusiasmo é um sinal da disposição moral da humanidade. Na altura manifestada em dois pontos: 1) direito de todos os povos a elaborarem livremente uma Constituição; 2) e a partir dela aspirarem à supressão de qualquer tipo de guerra ofensiva.

O 25 de Abril é, sem qualquer dúvida, maior do que os seus protagonistas. É também mais abrangente do que os partidos políticos que a capturam para seu património ideológico, usando-a como arma de arremesso, muitas vezes contra moinhos de vento. Ela é, ainda, mais profunda do que os slogans que a sequestram numa determinada perspectiva económico-política. Por isso, talvez os verdadeiros 25deabrilistas sejam essas personagens anónimas que questionam constantemente o estado da sua liberdade, que desconfiam da sua pureza moral, que continuam a trabalhar sem descanso no processo de emancipação pessoal, uma das melhores formas de aprofundar os ideais de Abril. “Ni dieu ni maître”, dizia o Maio 68, exactamente porque percebeu, logo à partida, que das revoluções surgem, em geral, as contra-revoluções, com novos deuses e mestres.

Quem participou no 25 de Abril já dentro do seu espírito mais autêntico, fê-lo generosamente, sabendo que tinha a honra e a alegria de fazer parte de algo que o ultrapassava por todos os lados. Infelizmente, muitos quiseram e querem impor uma verdade ao acontecimento, trocando a máquina da censura externa salazarenta pela ainda mais terrível autocensura. O que está realmente em perigo é a liberdade, mas parecemos cada mais dispostos a trocá-la por um prato de lentilhas (por mais importantes que sejam), por isso ontem o jornal Público pôs no título de uma reportagem a citação: “Quem não tem pão não tem liberdade.” Por mais razão que haja nesta sentença, inquieta-me que não se exijam, pelo menos, as duas coisas ao mesmo tempo, que se avance com a possibilidade de no nosso contexto socioeconómico, de pobreza mas não de miséria generalizada, se sobrepor o pão à liberdade. Experimentem ter comida na prisão.