A Dormideira

 Há uma mulher vestida de noiva à minha espera, quando eu morrer não chores não, ouve a minha voz a rimar no Rio Trancão.

Allen Halloween  

 

Se o lápis do narrador a adormeceu, só esse mesmo lápis a pode a acordar... Abriu a sebenta azul, as páginas numeradas, as 3 histórias do Capitão Soninho, e por cada ponta que se corta nasce uma estrela nova, depois a página 31 numa caligrafia quente, letras muito redondas e cheias, que podiam ser vistas como desenhos, sem serem lidas, ali o leitor podia adivinhar o seu gesto calmo, a respiração pausada: a letra gorda que anestesia os olhos, antes do lápis ficar mais nervoso, adivinha-se nas páginas seguintes o fio de um raciocínio mais rápido, o arfar a passar para a escrita, o lápis acompanhando a história da Dormideira.

Um corvo tinha deixado cair uma semente gorda de papoila. Com a chuva ela inchou e rebentou a terra quente … Na estação seguinte a Dormideira ganhou vida – o seu caule seguro, tomado ao mesmo tempo pela dose certa de apatia controlada, a castração do desejo que a inibia de se erguer. A Dormideira espreguiçava-se por dentro em jeito de oração. Podia não ter sido um corvo – Podia ter sido um homem. O narrador tem um lápis, mas ele é imaterial, desenha só o fundo das personagens, o seu perfil e núcleo, a sua essência, de resto os géneros mentem, as espécies mentem, não as há – Apenas uma vida cuja razão era dormir - tirar a dor, anestesiar. A Dormideira que crescia, com os ramos que se entrecruzavam, imitados na Arte Nova, em candeeiros, varandas, entradas de metro, o ferro trabalhado como braços de sono, torcidos, entrelaçados - vida correndo para as pontas: se alguém lhe cortar uma ponta ela crescerá com mais força - Irrompe no céu muito escuro.  Ela ganha novas inclinações, como uma estação de Metro, o túnel do ferro de saída para a rua. Depois da estação das chuvas, a papoila fechava-se durante a noite, cinco minutos de um lento virar para dentro para dormir - dormir verdadeiramente como nunca nenhuma pessoa conseguiu. Este momento era captado por um realizador de Cinema Mudo, a câmara na sua visão parcial apontava em campo/ contra-campo o crescimento do verdadeiro sono. O realizador escrevia legendas em fundo negro, o dia-a-dia da Dormideira, aforismos que retirava da sebenta azul. Procurava filmar naquele instante a origem da Anestesia; o ponto de viragem (algo parecido com a música e daí muito parecido com o cinema Mudo, as estátuas da Morte e as danças da Ilha de Páscoa). Neste abrir-se o realizador procurava o segundo em que a dormideira começava a ser uma poderosa fonte de alívio da dor.

 

Amava para dentro,
 A sua função era dormir…  

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O narrador tem uma borracha, pode apagar o sono, decidir acordar a personagem. Continuar a história com toda a pressa e na sua vontade de dizer tudo despertá-la. O traço torna-se rápido, nervoso, o bico do lápis parte-se. A Dormideira Fica interrompida. A sua razão é dormir.

 

Nuno Brito, Cidade do México, 2 de Julho de 2012.