Uma menina de escola

Um sujeito disfarçado de turista, mediocremente disfarçado, inábil para ocultar os dedos de drogado ou uma tatuagem no pescoço em que sobressaíam as palavras “beija-me no gargalo”,  aproveitava qualquer coice do eléctrico para enfiar a manápula nos bolsos recheados de estrangeiros risonhos. Não acreditando em Deus e sendo avesso à piedade e à prática das chamadas boas acções, recuso-me a ajudar velhinhas na passadeira ou a atirar moedas para o balde do ceguinho. O mundo, pântano mal frequentado, caminha para um fim merecido, e o meu desejo é contribuir o mais possível para acelerar esse fim. Não me apanham a salvar alguém de um atropelamento. O meu conselho, se mo pedirem, como é óbvio, que não serei eu a servir de muleta a gente que não vale trinta minutos da minha existência, é o seguinte: matem-se antes que a doença ou outros como vocês vos matem. Tanto me faz que um vagabundo ganhe a vida a roubar ou que arranque as tripas a um comerciante por causa de uma moeda. Mas enraiveço-me se me puxarem a carteira enquanto leio Tolstói, como fez o imprevidente meliante do pescoço tatuado com pedidos de felácio. Devido a uma conjugação de factores, dos quais se podem destacar o escasso número de horas passado na cama, o excesso de trabalho burocrático, a concentração exigida por certas leituras e a falta de cafeína no sistema, arrebanhei o carteirista pelo cabelo, tendo-lhe acertado na testa umas quantas vezes com o joelho. Isto é para que não voltes a meter o dedo naquilo que não é teu, ensinei-lhe, armado em moralista. Agora identifica-te, sentenciei depois, como se fosse um agente da autoridade. Identifique-se. O carteirista, atarantado, esgadanhava o chão à procura de uma porta de saída que o salvasse de um previsível espancamento. Foi a última vez que roubei, jurava, tentando trepar para o colo de uma gorda holandesa untada de protector solar, protector esse que já não ia a tempo de evitar uma tostadura vermelha. A última vez, gargalhei, assumindo o papel de guarda, mostra-me a tua identificação antes que te esfrangalhe uma barra de aço nas costas. Arrastei o indivíduo pela orelha ao longo de várias dezenas de metros, e depois de arranjar um cordel passeei-o como se de um cão se tratasse. Esta terra não existe. Matar um carteirista, ler um dicionário de A a Z, comer areia, ninguém quer saber, fazemos o que nos aprouver, embora alguns insistam que não, fomos abandonados, cuspidos. Esta terra não presta. Esta terra aproxima-se do seu desaparecimento. Enterro-me na banheira, folheando o meu Tolstói e chupando um valente cigarro. O meu planeta é de lodo.