Morte de um primo
/Tendo eu sido informado de manhã por telefone, de fonte segura e inquestionável, da triste notícia do falecimento de meu primo, foi com absoluta perplexidade que, ao chegar a casa nessa tarde, fui recebido por minha esposa com um beijo na face e as seguintes palavras: “Teu primo Amadeu passou por aqui há meia hora à tua procura. Diz que é capaz de voltar ainda antes do jantar porque precisa de falar contigo”.
Corrijo. O termo perplexidade não é de todo suficiente para designar com acerto a quase vertigem sentida naquele instante, a onda de gelo que por segundos me percorreu tronco e membros, em todas as direcções possíveis, para vir alojar-se no estômago como um soco húmido e na cabeça verter-se como um balde de água fria. As expressões populares têm quase sempre a sua plena razão de ser. Felizmente que minha mulher se encontrava bastante ocupada na cozinha, a braços com uma receita de estufado que mais do que uma vez lhe saíra menos bem, pelo que não chegou a reparar na expressão de terror que seguramente tomou conta do meu rosto. Após o breve beijo de saudação com que acompanhara o violento anúncio, virara costas e regressara de imediato à lida gastronómica, com a frase “põe-te à vontade e vem ajudar-me”, claramente decalcada de um qualquer filme ou série televisiva, numa curiosa mistura entre ordem e sugestão.
Nauseado e com os joelhos periclitantes, encaminhei-me para o escritório onde diariamente tenho à minha espera a poltrona de leitura de meu pai, para os momentos de repouso ou introspecção. Não percebia naturalmente o que se passava, nem sequer estava ainda em condições de ponderar as explicações lógicas potencialmente à disposição. A única certeza que tinha naquele momento é que não podia partilhar esta contradição de informações com minha mulher, nem sequer por ora confirmando junto dela se fora efetivamente Amadeu a passar por casa à minha procura. É que a Mónica é uma pessoal sensível e eu jamais seria capaz de voluntariamente submeter o seu coração de pardal a qualquer tipo de angústia ou arrelia. Ela, que com toda a sua inabalável crença no amor e no futuro, me salvou de um abismo garantido, para o qual eu em tempos caminhava, cínico e desesperançado. Sim, há que dizê-lo sem quaisquer rodeios: sem a sua extrema bondade, sem o amor que inexplicavelmente me tem, imagino que seria um homem bem diferente do que sou, mais amargo e sombrio, e seguramente sozinho. Eu sei estas coisas, tenho plena consciência de ter sido resgatado por ela a uma existência de solidão, arrependimento e miséria afectiva. A uma vida de medo. Foi ela que me curou do medo de amar, do medo de abrir o coração ao amor e aceitar que o destino humano, por mais breve que seja a nossa existência neste planeta, pode muito bem ser coroado de alguma felicidade. Mais do que uma vez poderia ter-me abandonado à triste companhia de mim mesmo, para ir procurar noutro homem alguém mais solar, mais conforme a sua própria personalidade risonha. Mas não foi isso que aconteceu. Porventura movida por um qualquer sentido de dever ou desafio (as mulheres têm estas insondáveis motivações), tudo fez por arrancar-me à escura caverna que eu habitava, para vir trazer-me a uma vida conjugal tranquila e florida. É por isso que sempre me senti, como precisamente nesse momento, empenhado em poupá-la a todas as agruras ou reveses que inevitavelmente os dias trazem consigo.
Os minutos passados em absorta cogitação tinham-me ajudado a recuperar um pouco a tranquilidade. A velha poltrona (a que o meu pai austeramente chamava cadeirão) sempre tivera em mim esse bom efeito, provavelmente já desde os tempos de infância, quando aí me sentava na companhia de meu pai, a folhear atlas e observar à lupa os selos da afamada colecção de família. De cabeça arrefecida, liguei ao melhor amigo de meu primo, que fora quem em primeira instância me dera a funesta notícia do seu falecimento. Não lhe queria perguntar se Amadeu realmente morrera, mas justificava-se novo telefonema para inteirar-me dos pormenores que não tivera antes tempo de obter, ou mesmo para saber horas e local de velório e funeral. Inconsolável, o bom amigo a tudo me respondeu, ainda que a custo, na voz quebrada das pessoas abaladas. Amadeu falecera de paragem cardíaca, a caminho do hospital, depois de ter começado a sentir dores intensas no peito, à sobremesa de uma jantarada de amigos. Sim, jantarada fora exatamente o termo utilizado pelo amigo, no que me pareceu uma subtil alusão a excessos alimentares, provavelmente repetidos ao longo de muitos anos, como causa possível de um sistema cárdio-respiratório deteriorado. O velório teria lugar no dia seguinte e o funeral logo a seguir, no fim de semana.
Afogado na poltrona, dei por mim a pensar, não mais na inquietante informação que minha esposa me dera, mas no coração de Amadeu. No próprio órgão, quero dizer. Aquele músculo enorme e encarniçado, pulsando permanentemente do primeiro ao último minuto da sua vida, distribuindo rios de sangue para todo o lado, constantemente, sem sequer parar um segundo que seja para questionar o seu labor e a razão da sua engenhosa existência. Em Amadeu, como em tantas outras pessoas no mundo inteiro a cada minuto que passa, o coração decidira parar, por já não ter mais condições para continuar ou simplesmente por cansaço, por consciencialização momentânea de como tudo isto é vão e contraditório. Diz enfim a sabedoria popular que o coração tem razões que a razão desconhece. O de Amadeu aparentemente avisara-o um pouco antes, com aquelas dores no peito que a medicina e qualquer pessoa bem informada costumam levar bastante a sério. E não resistira à viagem para o hospital, não obstante seguramente todos os esforços do serviço de emergência. Aí chegara já sem vida, como escrevem muitas vezes os jornais.
Horas depois, Amadeu levantara-se da maca hospitalar, calçara-se, compusera a fralda da camisa e apanhara um táxi até minha casa para vir falar comigo. E eu sem ninguém com quem partilhar o terror que esta ideia me inspirava.
Fazendo fé no absolutamente sobrenatural, que me poderia querer, afinal de contas, o meu defunto primo? Que querem tradicionalmente os mortos dos vivos, de acordo com séculos de imaginário popular, de boa e má literatura e umas quantas décadas de cinema fantástico? Que lhes podem querer, até, em termos práticos? Eu cá não tenho por hábito furtar-me a conjecturas estéreis, tendo inclusivamente ao longo dos anos aperfeiçoado o meu entediado intelecto na arte da especulação. Ossos do ofício, talvez. As pessoas normalmente procuram-me em contexto profissional, pelo que comecei por colocar a hipótese de que Amadeu, ainda que já falecido, quisesse garantir os meus serviços de experimentado advogado. A coisa fazia algum sentido, uma vez que uma morte obriga sempre a que se preste alguma atenção a questões legais, por mais simples e evidentes que sejam. Solteiro e sem filhos, talvez meu primo não tivesse em vida dado legal destino aos seus bens, e agora, surpreendido pela fatal indisposição, quisesse fazer comigo algum testamento, ainda que o direito das sucessões não seja de todo a minha especialidade. Não obstante o absurdo da hipótese, este era ainda assim o cenário mais plausível, ou pelo menos com maior fundamento na realidade dita concreta do mundo que habitamos. Apesar de toda a estima e cordialidade, meu primo e eu jamais mantivéramos uma amizade estreitíssima, assim cheia de confidências e momentos partilhados. Daí que mais facilmente ele quisesse ver-me na qualidade de advogado do que propriamente para qualquer outro mais elevado fim, do qual não pude porém deixar de elencar mentalmente alguns exemplos. Fraternal despedida, com garantias de que ficará do outro lado a zelar pelo meu caminho (sem dúvida que um defunto utilizaria a clássica imagem da vida sobre a terra enquanto caminho, percurso). Revelação, por inconfidência despropositada, dos segredos post-mortem, quer fossem as notícias boas (isto aqui é impecável, estou muito bem, vem cá ter depressa) ou nem por isso (não há nada, fraude!). Pedido encarecido para tratar de algum assunto de extrema importância que a morte inesperada não permitira levar a cabo, como por exemplo, transmissão de uma mensagem, restituição de um qualquer bem, realização de acto simbólico, enfim, qualquer coisa indispensável para o falecido poder “descansar em paz”, se é que alguma paz ou descanso nos esperam do outro lado.
O efeito relaxante da poltrona começava agora a manifestar-se seriamente. Notei que já não movia qualquer membro há largos minutos. Encontrava-me em repouso absoluto. O batimento cardíaco certamente abrandara para o mínimo indispensável. As pálpebras começavam a pesar-me e só a custo pude voltar descolar a língua do palato, dada a fraca salivação do momento. Vi o rosto de Mónica espreitar-me pela porta entreaberta do escritório. Eu nunca fechava a porta, para poder ouvi-la lá dos confins do quarto ou da cozinha. “Então, tudo bem? Vens ajudar-me ou quê? Preciso que me faças a salada.” Sim, claro, já ia, estava ali só a descansar um bocadinho. Aproveitei para perguntar-lhe a que horas Amadeu tinha passado por ali e se ao menos dissera ao que vinha. “Foi mesmo agora, por volta das seis. Não disse nada. Só disse que não te podia telefonar, por isso voltava mais tarde. Está quase pronto, despacha-te”.
É difícil para mim explicar o que depois se passou em minha casa. Recordo sentir-me afundar cada vez mais na poltrona de meu querido pai e de sentir uma alegria violenta ao lembrar-me do seu rosto, do abraço rijo, da sua voz a chamar-me do outro lado do olival. As recordações são sempre sobrevalorizadas por quem desse modo revive o passado, e eu nunca tive grande talento para verbalizá-las. Defeito meu, para bem comum. O meu corpo era já não mais que uma enorme pedra, imóvel e impassível, estranhamente acomodada a uma poltrona, ao mesmo tempo que a mente já não lhe pertencia, decidida que estava a esvoaçar por si própria no espaço suspenso do escritório, em movimentos desconexos. Vi a última luz dessa quinta-feira de Agosto atravessar a persiana semicorrida numa linha de poalha e vir iluminar no braço da poltrona o modesto padrão de veludo. Depois senti uma grande angústia por Mónica, a salva-vidas. Uma espécie de saudade culposa. Percebi tudo quando a campainha tocou. Mas nessa altura já as pálpebras me pesavam de mais e eu não pude voltar a olhar para o mundo.