Eu e as minhas irmãs
/I. Quando o Algarve era só sul e os casamentos duravam para sempre
Eu e as minhas irmãs nunca distinguimos o barlavento do sotavento. Durante muito tempo nenhuma de nós sabia qual era qual e o Algarve era só um para nós.
Tanto podia o barlavento ser sotavento como o sotavento barlavento, eram duas palavras que não nos diziam absolutamente nada. Foi só depois de começarmos a amar assolapadamente o algarve das ilhas e das noites sem vento que eu finalmente me comecei a preocupar com tal assunto e hoje posso dizer que sei onde começa um e acaba o outro. E nunca mais me enganei.
Pensavanisto enquanto olhava para as pequeninas ondas que rebentavam na areia da praia de um qualquer barlavento. O marido, preso na paisagem, mesmo em frente à água, andava à cata de condelipas para o nosso jantar.
É um marido como deve ser: ama-me com o seu amor de marido. É um amor honesto, dentro dos limites canónicos. Ama-me porque sou mulher, a sua mulher; mas não me pode admirar porque a sua mulher não é um homem. Caso fosse, admirar-me-ia mas não me poderiaamar (estas nuances são como nuvens). Falta então, pela força das circunstâncias, admiração ao seu amor e faltando essa admiração fica a faltar o amor.
Mas à noite ele abre as condelipas, põe a mesa e despeja o vinho. Porque isso pode um marido fazer pela mulher que ama mas não admira.
E eu, enquanto como e bebo o vinho, fico a pensar nas mulheres em geral. Nas minhas irmãs e na nossa dificuldade de anos em chamar barlavento ao barlavento, sotavento ao sotavento. Penso nas condelipas que ele desenterrou e trouxe e cozinhou, e devia estar tão feliz e estou, mas penso nas mulheres em geral e pergunto:
- Porque é que ainda estamos juntos?
- Porque gostamos de comer condelipas e beber vinho.
Ele é prático como um homem que sabe que no fim do dia o que conta é o que se come e o que se bebe.
- Se o amor já se foi… - insisto, algo descabelada, com o desnorteamento próprio de quem não sabe onde ficam os mais básicos pontos cardeais.
- Mas ficou a amizade, a admiração…
Pela janela entra uma metade de lua a fazer-me cócegas na planta dos pés, o que me provocade imediato uma tremendavontade de rir.
II
Eu e as minhas irmãs comprámos uma quinta a cair aos bocados. Tínhamos vendido a casa da cidade e estávamos a nadar em dinheiro.
Assim que chegámos, empregámos pessoal para arar, plantar, regar e dar de comer às galinhas; comprámos tratores, debulhadoras, foices, pregos, tesouras, tudo o que é suposto haver numa quinta.
Depois, sem sabermos o que fazer, despedimos os empregados, despachámos os animais e só sobrou o jardineiro que cuida das rosas.
Estamos espantadas com a vida no campo. Que adoramos, não há dúvida. Mas tem os seus quês. A irmã do meio preocupa-nos: anda pálida e com olheiras fundas. A gente pinta-a para disfarçar, a ver se não aparece assim às pessoas da aldeia, mas não serve de grande coisa. Parece que se vai partir a cada passo que dá. Tudo a enerva no campo, desde o silêncio ao mais pequeno barulho, acho que ela ainda morre por cá.
A casa está a cair. Toda presa por fios e fita-cola, por assim dizer. Quando tomamos o pequeno-almoço, uma de nós agarra a parede para as outras duas comerem o pão em paz. E quando acabamos, uma de nós duas toma a vez da outra para que ela possa comer sem sobressaltos . Nunca a das olheiras. Essa vai estender-seao comprido, esgotada, numa chaise longue toda rota.
Alimentamo-nos de pão e água. Não precisamos de mais nada. Às vezes, um vizinho mata um pato e vem oferecê-lo, rodeado de arroze chouriço bravo, mas não gostamos de violência e mortandade e a irmã das olheiras começa a vomitar ainda o cheiro da carne vem longe.
Sou eu a mais velha e sendo a mais velha sou também a mais responsável; a irmã mais nova é membro de uma associação de observadores de nuvens e para ela está sempre tudo bem.
A cada dia que passa, o campo e a quinta trazem-nos novas descobertas e até a irmã das olheiras quando tem forças para falar diz que gosta muito da natureza.
Quem nos visita espanta-se connosco e com o que por aqui encontra. Mas somos tão bonitas, uma de nós tão pálida, outra tão sonhadora, e eu tão responsável que ninguém se atreve a comentar coisa alguma sobre o que quer que seja.