Coordenadas do Invisível: A partir de Os Degraus do Parnaso de M. S. Lourenço
/O presente ensaio, afastando-se de uma pretensão de conjunto, visa olhar para alguns dos textos da obra Os Degraus do Parnaso, do poeta, ensaísta e tradutor M. S. Lourenço.
Assim, o ponto de partida será constituído pelas seguintes quatro meditações: Canções com Palavras, A Abelha do Invisível, Um sonho de Mallarmé e Os Estilos de Wittgenstein, o que não impedirá referências e conexões com outras obras do autor.
Além do desvelo de nós temáticos singulares saídos da nossa escolha, aceitaremos o convite de expansão, materializado em incontáveis diálogos possíveis, que cremos estar contido nas deambulações de M. S. Lourenço. É o autor que se mostra.
1. No princípio era a Literatura
Numa entrevista, M. S. Lourenço diz o seguinte: “ (…) com 25 anos de idade, já não me foi possível desfazer o hábito de pensar que só pessoas de uma imaginação inferior pensam que o mundo é a realidade imediata e permitem que a sua vida seja ditada por ela.1”
Ao lermos esta afirmação, que praticamente conclui uma entrevista dada poucos anos antes da morte do poeta, somos intimados a ver uma pequena, mas fundamental e sintomática, cadeia lógica: a opressão que resulta de uma perspectiva estropiada, porque pobre, da vida. A pedra-de- toque é, pois, a imaginação.
Se fosse possível, num exercício quiçá arriscado, tentar encontrar a presença mais obsidente em Os Degraus do Parnaso, talvez não errássemos por muito ao dizer que é a Literatura, nas mais diferentes e originais construções, constituindo uma espécie de núcleo de irradiações da obra.
Ora, em Um Templo no Ouvido, M. S. Lourenço assimila a ideia de Poesia lato sensu à de Literatura, perspectiva que poderá possuir suporte no étimo grego poiesis (ποίησις) que significa fazer ou criar.
No ensaio Canções com Palavras – cujo título já deixa antever a relação (bastante) próxima entre ambos os domínios artísticos – a frase inicial é uma verdadeira interpelação, reforçada pelo tom sentencioso: “Toda a Arte aspira a alcançar o estatuto de Música.” Em M. S. Lourenço, o adjectivo “musical” serve precisamente para elogiar a escrita de alguns dos seus escritores dilectos, como sejam Samuel Beckett e a sua “prosa musical” (Lourenço, 2009, p. 463) ou todo o universo criado por Marcel Proust (ibidem, p. 450 e ss)2.
O estádio elevado da Música fica a dever-se à “ausência de um conceito de denotação” - ideia que iremos reforçar aquando da referência a Ludwig Wittgenstein – e ao seu carácter fluido, ou seja, descontínuo e que sobretudo enforma ou estiliza.
Pegando no exemplo nacional privilegiado para expor na prática a sua construção ideiativa, M. S. Lourenço serve-se de Camilo Pessanha e da “mais bem sucedida tentativa de reclamar para a poesia lírica o estatuto de Música” (ibidem, p. 454). Se bem que Pessanha, mormente no seu poema Violencelo, seja visto como “continuador” do trilho criado por Cesário Verde – ambos os poetas, mas especialmente o segundo, são presenças regulares no Parnaso, como se pode constatar, por exemplo, no olhar direccionado para o poema O Sentimento dum Ocidental, especialmente em As Três Graças e Epopeia Crepuscular – a verdade é que terá sido o simbolista português o mais perfeito descendente de Paul Verlaine e da sua Art poétique assente no primado da Literatura melódica ou ritmada3.
O trabalho encetado pela “eufonia”, pelo “contraponto” e pelo “material temático que possibilite a construção e o desenvolvimentos do pensamento lírico” (ibidem, p. 455) é a conditio sine qua non para a Literatura recuperar – note-se que M. S. Lourenço ao empregar a palavra “reapropriação” faz menção a um passado em que a Poesia ocupou um degrau mais elevado na medida em que se aproximou da Música/musicalidade – o estatuto de “poesia pura”, cujo parente mais próximo será a “música absoluta” (ibidem, p. 457). Lado a lado, Música e Poesia criam obras de arte que fogem à mera representação – entendida como mimésis – desembocando numa “suspensão temporária do sentido”, i.e., não se preconiza um desaguar no vácuo mas, pelo contrário, a dimensão propugnada poderá ser vista como a-significante. O que se elogia não será a arte pela arte, a técnica pela técnica, mas a abertura de infinitas hipóteses irredutíveis até porque não cristalizáveis num sentido essencialista porque pré-existente e absolutamente definidor e definitivo.
O texto A Abelha do Invisível vem reforçar a ideia de elogio ao intangível.
Se algumas das tentativas para identificar o objecto da Poesia resvalaram praticamente no inútil– são referidos os empreendimentos de Dante, Shelley ou Hegel, entre outros –, na opinião de M. S. Lourenço isso poderá ter ficado a dever-se a um entorse pré-existente advindo do estudo aristotélico sobre o tópico. Mais concretamente, é a poesia lírica – afastada do estudo por Aristóteles, o que suscita a crítica feita ao estagirita e à sua “irrelevante geografia conceptual” (Lourenço, 2009, p. 589) – que facilita uma aproximação ao objecto da própria Poesia.
Assim, após retirar a lírica da sombra, M. S. Lourenço olha para Martin Heidegger encarando-o como detentor do contributo que se revela mais interessante. Ao caber na categoria, algo abrangente, de “autêntico criador de enigmas” (ibidem, p. 589) pode, assim, depreender-se que a necessidade do enigmático - ou, porventura, da enigmaticidade que remete para o reino do sentir -, é uma ferramenta imprescindível para ensaiar algo próximo a uma tangibilidade de sentido, uma vez que, como se poderá ir constatanto, a Poesia furta-se a perspectivas que se pretendam completamente deterministas e consensuais.
O ensaio de Heidegger, de 1946, parte de Friedrich Hölderlin – e da pergunta-lamento “...e para quê poetas em tempo indigente?” - de modo a problematizar uma caracterização bem mais elástica e que se prende com a posição e contributo do poeta na sociedade, mormente numa época “estéril”, mas, mais concretamente, com a relação entre a poesia/arte e a existência do humano no mundo – grosso modo, Dasein e Da-sein.
Se Rainer Maria Rilke nos aparece em Heidegger como ensaio-resposta à questão colocada por Hölderlin, essa aproximação hermenêutica encetada pelo filósofo é aproveitada por M. S. Lourenço que, contudo, acabar por se distanciar, uma vez que sugere um caminho tendencialmente complementar e pessoal.
O conceito heideggeriano de “descompreensão”, que será sinónimo de um recalcamento involuntário dirigido ao objecto das percepções cognitivas, o qual vem a causar a esterilidade ou, pelo menos, o entorpecimento da imaginação com a correlativa produção inconsciente de um artifício daninho, serve a M. S. Lourenço para condensar o rio de pensamento de Heidegger no seu ensaio. Estando a imaginação e a capacidade de conhecimento como que sequestradas, será necessário elaborar uma saída que mais não será do que uma sucessão de intervalos. De novo, M. S. Lourenço deixa-se ir, continuando a porta aberta por Heidegger, Rilke e Hölderlin, este último um poeta “para quem o único objecto da Poesia é a própria Poesia” (ibidem, p. 590), dimensão fundamental para que o terreno de exploração acerca do objecto da Poesia possa veicular-se graças e através do desdobramento da Verdade incalculável4.
Tendo a Técnica dado ao humano a obsessão pela objectivação e imediatismo, reforçados pela ideia de M. S. Lourenço de “filistinismo” que serve para reafirmar a pobreza espiritual humana, o tal amolecimento da disponibilidade para o êxtase terá de ser substituído pelo “exercício da memória, o qual é um retorno ao coração”, por força a que se opere “o insistente zumbido da abelha do invisível, a qual é o símbolo do poeta que canta o carácter preliminar de tudo o que é apenas objecto de visão.” (Lourenço, 2009, p. 591) O múltiplo, mais do que o plural, é o que postula a abertura ao mundo, a relação e reacção à Verdade: só “a voz da Poesia [nos] pode salvar”. Não parece haver espaço nem lugar para pretensões que visem o abandonado da palavra, entendida como proveniente do reino da Literatura; muito pelo contrário, e sublinhando de novo a tónica na intangibilidade, M. S. Lourenço volta a lançar a ponte com a Música, ou mais concretamente, com o melódico e o intraduzível porque integrantes de uma relação de confiança. Stephen Dedalus no Ulisses, de Joyce, diz-nos “Fecha os olhos e vê”: é precisamente a criação desse espaço-tempo em relação ao qual em grande medida só se pode inferir, tactear ou, melhor dizendo, sentir, a que se vem aludindo nestes ensaios de M. S. Lourenço, e que é o tal “sonho de Mallarmé”5 6.
No texto intitulado Um sonho de Mallarmé, que é o de “escrever um período que pudesse ser considerado um labirinto” (ibidem, p. 582), M. S. Lourenço, mais uma vez partindo de uma hipotipose pessoal – a qualidade estética da prosa kantiana - mas ampliando-a em feixes criativos, diz-nos que “Em última análise conta para a definição do valor estético de uma obra de arte literária o papel desempenhado pela, e os resultados alcançados na, criação de símbolos, que são ao mesmo tempo ícones e veículos, eficientes e plásticos, da representação do pensamento.” Se o diálogo, eminentemente estético mas não só, entre Immanuel Kant e Samuel Coleridge é aí posto a nu, não se trata, porém, de forçar a união absoluta entre filosofia e literatura – desejo que raia o cliché; como lemos, a criação de símbolos deve-se à “imaginação”, ou “navegação”, sem as quais “a obra de arte literária nem é sequer pensável” (ibidem, p. 582). A proposição de hipóteses, do que se materializa necessariamente numa abertura, encontra apoio directo quando M. S. Lourenço veicula o seguinte:
“Quando falo da eficácia de um símbolo não quero ser entendido num sentido exclusivamente pragmatista, mas antes num sentido alargado, segundo o qual a utilidade de uma construção simbólica é medida pelo impacto que a construção simbólica tem em criações do mesmo domínio ou domínio afins”. (Lourenço, 2009, p. 582)
O conhecimento, e muito concretamente a sua busca, são magmáticos. Ainda nesse texto do Parnaso, tomamos contacto com três características ou “predicados estilísticos” que têm relevo para o caminho infinito que é o labirinto de Mallarmé: a “repetição”, a “expansão” e a “ramificação”. Aniquilando o pretensiosismo de quem menoriza a prosa de Kant, M. S. Lourenço, graças às três referidas componentes da “prosa de arte”, regressa à valorização da ideia de movimento ou fluidez que contribui para a valorização estética da prosa. Se, simbolicamente, em Kant e em Coleridge encontramos a “Ilha da Verdade” rodeada pelo “oceano da Ilusão”, a referida “navegação”, símbolo-irmão da potenciação criativa, materializa a des-cristalização de que a busca do conhecimento carece.
Prosseguindo os gestos de densificação topográfica relativamente à Literatura, M.S. Lourenço, no ensaio Nihil Sub Sole Novum, revela-nos as duas faces da mesma: a cognitiva e a intuitiva7.
Ora, a primeira, a de teor cognitivo, prende-se com a “investigação das leis da vida interior” (Lourenço, 2009, p. 480), i.e., a literatura pode ser/é um medium privilegiado para o (auto) conhecimento, tornando-se imperioso, nesta sede, referir Paul Ricoeur e toda a sua construção hermenêutica no que respeita, precisamente, a identidade-narrativa como auxiliar da identidade-pessoal (ipse). Atente-se que para o filósofo francês, as identidades pessoal e narrativa não se confundem: a segunda pode, sim, influir na primeira, na medida em que a ficção literária pode constituir um veículo interessante e importante de auto-conhecimento para quem com ela toma contacto. Apoiando-se em Proust, mais concretamente, quando o escritor francês nos diz que deseja que os seus leitores sejam leitores deles mesmos, o pensamento filosófico de Ricoeur precisa de ser, a propósito de M. S. Lourenço, como que peneirado8.
Inferindo, a verdade é que a segunda faceta da literatura - “face intuitiva” - possibilita, através de “uma linha de um texto literário (...) ouvir o som do infinito.”, prisma que, em conjugação com a índole cognitiva, cimenta a posição tida como optimista do autor (Lourenço, 2009, p. 480). Mais uma vez, numa recorrência que simboliza evidência, M. S. Lourenço enfatiza a importância da imaginação, umbilicalmente ligada ao ambíguo e à infinitude, como força propulsora, no caso, do fazer artístico ou poiético. E é aqui que cabe incidir o foco no autor porventura mais presente, se bem que muitas vezes a título implícito, nestes ensaios de M. S. Lourenço: Wittgenstein.
2. Recuperar a fragilidade do(s) sentido(s)
Dedicando-lhe um ensaio – Os Estilos de Wittgenstein – o tributo ao filósofo austríaco é sintomático. Encarado como “mestre da prosa de língua alemã, ao lado ou a par dos exemplos mais conhecidos de Schopenhauer e Nietzsche” (Lourenço, 2009, p. 585), a verdade é que é o Wittgenstein das Investigações Filosóficas que mais detenção merece9.
Para M. S. Lourenço, estilo compreende forma e conteúdo, daí que Wittgenstein funcione como exemplo paradigmático já que o filósofo consegue, numa tradição inaugurada por Heraclito, “fundir a expressão do pensamento filosófico na mais perfeita forma literária.” (ibidem, p. 585) – genealogia já anteriormente referida, ainda que com diferenças, em Um sonho de Mallarmé.
George Steiner tem um entendimento com semelhanças de monta no que tange, desde logo, a relação entre a literatura e a filosofia: “ (...) toda a filosofia é estilo. Deixando de parte a lógica formal, nenhuma proposição filosófica é dissociável dos seus meios e do seu contexto semânticos.” (Steiner, 2012, p. 56) Aliás, Heraclito é, igualmente, uma das presenças de maior importância nessa obra de Steiner que tem, porventura, Platão como o maior génio literário/filosófico, cujo Sócrates é um monumento artístico ímpar.
Debruçando-se sobre o Tractatus, M. S. Lourenço elogia o poder de síntese, ou poético, que aí está contido, como forma de expressar construções que advêm do positivismo lógico dessa fase de pensamento do filósofo austríaco. Após uma deriva acerca dos méritos de Karl Kraus e do eco da sua voz em Wittgenstein, nomeadamente, o aforismo, M. S. Lourenço repete as conexões entre a filosofia e a Poesia, desta feita alicerçadas nos exemplos de Parménides e Lucrécio - “modelos canónicos (...) da formulação poética de complexos sistemas filosóficos.” (Lourenço, 2009, p. 586). Novamente, as semelhanças com Steiner são evidentes: o extenso elogio a De Rerum Natura, autêntica e raríssima “epopeia filosófica”, serve para o francês reforçar a sua ideia de uma “poesia do pensamento”.
Uma vez que o Tractatus assume a feição do “Classicismo”, já as Investigações postulam “a estética do Romantismo, em virtude da ênfase posta sobre o papel do sujeito cognitivo e no lugar primordial que é dado ao tema da consciência reflectiva” (ibidem, p. 587). A verdade é que a importância do abandono da concepção de sentido enquanto “representação” (denotação) para a de sentido enquanto “uso(s)”, por parte de Wittgenstein, merece a maior das atenções; e essa circunstância está bem patente nesse preciso ensaio de M. S. Lourenço, na medida em que no Tractatus:
“a sua postura [de Wittgenstein] era a de um Oráculo que apenas transmite para a posteridade a verdade absoluta do seu saber, nas Investigações adoptou a postura vulnerável da perturbação da alma, da fragilidade do conhecimento (...) A Filosofia não é agora uma doutrina – muito menos uma verdade – mas antes uma tentação que tem de ser superada (...). (ibidem, p. 588)
Refere-se ainda a antiga forma de encarar o conhecimento como sofrendo de uma “patologia conceptual”. O próprio Wittgenstein afirma, no prólogo das Investigações, que a contraposição entre ambos os prismas ganha especial visibilidade “pelo contraste e contra” (Wittgenstein, 2015, p. 166), o que não inviabiliza, claro está, o juízo estilístico de aproximação que M. S. Lourenço estebelece entre o Tractatus e as Investigações que se caracteriza pela negação da retórica.
Todavia, o contacto quer com Wittgenstein, quer com M. S. Lourenço não pode ser precipitado.
Steiner diz-nos que “em Wittgenstein tudo é fragmento” (Steiner, 2012, p. 31), não obstando a circunstância voluntária ou involuntária dessa circunstância. Ora, o fragmentário é o descontínuo, o hipotético e o intermitente. E, provavelmente, o melhor modo de lidarmos com o conhecimento passe pela des-sacralização, cujo reflexo se pode encontrar no método levado a cabo nas Investigações. Como enuncia M. S. Lourenço, o quotidiano é o palco privilegiado para a materialização da filosofia – lembremos os “jogos de linguagem” e as “semelhanças familiares”, reguladas pela Gramática que se liga intimamente às denominadas “formas de vida” incontáveis e infinitas por definição, verdadeiros faróis para Wittgenstein, e os exemplos elencados pelo filósofo, o primeiro dos quais o “das cinco maçãs vermelhas” que salienta a “interioridade” sentida um pouco por todo o livro– havendo, precisamente, espaço fundamental para a
“imaginação metafórica, com a qual se pode transferir e testas o problema num outro domínio de objectos e com outros intervenientes. Acima de tudo o filósofo não toma partido a favor de qualquer doutrina, nem tem sequer qualquer doutrina a propor. Todas as doutrinas têm vantagens e desvantagens, em quantidades desiguais e em misturas diferenciadas.” (ibidem, p. 588).
Podemos, assim, vislumbrar uma característica comum a ambos os autores: o dirigir-se ao Outro como forma de ir ultrapassando a distância entre o humano e o mundo, hiato eterno, mas percorrível.
O sentido e todo o domínio correlativo do que se exime a uma lógica de utilidade, parece-nos, é uma problemática quase obsidente nos ensaios que temos vindo a trabalhar. M. S. Lourenço não pretende ser exaustivo ou ensimesmado. Atentemos nos seguintes versos:
“Uma fenda difere de um arranhão/E difere de um orifício. Um arranhão na cabeça/ Do lesado seria uma escoriação superficial/ Ou epidérmica, não necessariamente acompanhada/ De sangue. Um orifício é já uma penetração profunda/E a intuição mais comum associa-lhe a forma circular./ Se se trata de facto de uma fenda então estamos/ Na presença de uma linha, vertical, horizontal/ Ou oblíqua, com algum grau de profundidade.” (Lourenço, 2009, p. 215)
O conhecimento obedece a um trilho carregado de fendas, do “atrito ou terra àspera” de que fala Wittgenstein. A multiplicidade fragmentada do sentido é a tal fenda, que pode assumir as mais diversas formas – vertical, horizontal ou oblíqua. Deste modo, a abertura que é postulada pela Verdade do mundo não significa a fuga à linguagem, ou sequer a tentativa de o fazer; destapam-se, sim, possíveis modelos de relação que terão de se pautar por um ir caminhando. Como se disse, não há percursos necessariamente melhores ou piores, tudo ficando a depender dos “usos”, ou seja, das combinações que se encetem, uma vez que podemos tentar aproximar os fragmentos de incontáveis modos através da des-totalização do fugaz, que não se confunde com o efémero e artificial. O frágil e incerto são exigentes mas encerram em si a potencialidade para desaguar na maior das amplitudes, daí que a denotação – ausente, como se viu, da música e postulada, entre outros, por Santo Agostinho – constitua uma construção pobre e insuficiente de encarar o conhecimento e, consequentemente, a filosofia e a criação literária. Método ensimesmado e pretensamente essencialista, a denotação, por ser totalizante e dogmática, neutraliza o fluxo e o irredutível que carecem da libertação dos grilhões da causalidade. Poder-se-á dizer, assim, que o fazer filosófico do Wittgenstein pós-Tractatus prossegue a indagação enquanto permanência nos trilhos pelo conhecimento. Se o uso é o significado de uma palavra - §43 das Investigações – o saber “funda-se em última análise sobre o reconhecimento”, como se constata no parágrafo 378 de Da Certeza. A vida não concebe o ingresso absoluto no domínio da totalidade (lógica) e da estrita regularidade mas vai surgindo num terreno desorientado e mutável , daí que o que Wittgenstein mostra também não seja subsumível a um modelo nihilista ou etéreo10.
Deste modo, atente-se ao facto de a obra completa de M. S. Lourenço se denominar O Caminho dos Pisões. Igualmente, a colectânea de ensaios remete para o contínuo – Os Degraus do Parnaso; e, também, o título da primeira parte da obra, da qual retirámos todos os textos por nós estudados11, Atlas, confirma a ideia de mapa, i.e., de ligações possíveis, disjuntivas, num esforço de expansão imaginante. Precisamente por isso, Coordenadas do Invisível integra-se no espaço cartográfico que visa a apresentação do múltiplo advindo do intangível, desejo fomentado por aquela “visão panorâmica” que o § 122 das Investigações Filosóficas preconiza. O “contra” que Wittgenstein refere no prólogo da mesma obra vem precisamente reforçar a perspectiva, não tanto de exclusão, mas de contraste e discrepância enquanto fomentadoras do acto criativo.
A clareza sonora que a linguagem desagrilhoada deve assumir assenta na rejeição de soluções depuradas ou de reduto para dar lugar a tentativas ou ensaios (infinitos) que materializem a verificabilidadecomo modus operandi por excelência. É especialmente nessas propostas e nos convites que Wittgenstein e M. S. Lourenço endereçam que se torna mais veemente a distância no que tange as teorias formalistas da Literatura, de Michel Foucault ou do Formalismo russo, entre outros, já que a meta-literatura focada para a busca auto-referencial aí defendida se manifesta num discurso independente das cambiantes intempestivas dos usos.
Assim, se a generalização tolda e impede a ficção, irmã do mencionado método deverificação, a perspectiva mais adequada é a da investigação que, não obstante, se encontra sempre aferida pelas “formas de vida” que postulam a ligação ao mundo/realidade12. A coragem de pensamento requerida percorrerá caminhos cujas fendas se pautam por ter “algum grau de profundidade”, como nos dizem os versos de M. S. Lourenço, operando desse modo a hipótese de revelação do imanente.
Porém, a verdade é que, apesar de constituir um prisma exigente e complexo, a potência de criação carece da fricção, do desconhecido que é periclitante e improvável: no Paraíso de Adão e Eva não havia Arte, tendo sido necessária a Queda para que o novo pudesse surgir13.
3. Apresentação do rosto
O Cosmos de M. S. Lourenço é multiforme e movediço, se bem que melífluo.
Ora, Apresentação do Rosto é retirado da obra homónima e tida, por vezes, como auto-biográfica - rótulo que encerra em si especificidades e problemas que não cabe aqui, infelizmente, esmiuçar - de Herberto Helder, autor cuja obra também mostra contactos, até peculiares, com a música14. E n'Os Degraus do Parnaso é o próprio M. S. Lourenço que dialoga connosco, expondo e expondo-se.
Conjunto de ensaios, ou pequenos textos literários em prosa, a verdade é que a profunda erudição do seu autor, longe de cair no hermetismo, desenvolve uma forma de comunicação sui generis.
O Parnaso deambula, por exemplo, pela teoria da literatura, por África ou por compositores como Arnold Schönberg e Richard Wagner olhados com deleite ou pela história europeia; e, até mais do que esse cosmopolitismo temática e geograficamente alargado, se bem que profundamente ocidental, o que deslumbra é a dança a que assistimos entre os tópicos e as personagens de cada ensaio. Compor uma partitura onde voguem Eça de Queiroz e Sintra mas na qual o protagonismo é concedido “às prostitutas do Cacém”, é revelador de um temperamento que só pode resultar da centelha imaginante. Tenhamos presente o trecho da entrevista com que abrimos o nosso ensaio: se no Monte Parnaso se encontrava o Oráculo de Delfos, do deus Apolo, M. S. Lourenço é capaz de criar símbolos irradiantes que sugerem o desenraizamento que permite alcançar a estrada de Cesariny, possível através de uma deriva somente conduzida pela imaginação/amor/paixão, esse poder metamórfico capaz de pulverizar o artificial e criar o que é vestígio e permanece. O teor bi-vinculante da Literatura – cognição e intuição – converge, como relembra a prosa de Nihil Sub Sole Novum, no reduto inexpugnável, primeiro e último, do imaginar, autêntico húmus do humano, liberdade e ponto de fuga.
O dilema que desde sempre acompanha a transmissão do conhecimento/sentido pode ser profundamente criativo. A opacidade vs a clareza podem, no fim de contas, fazer sobressair a índole actuante e empenhada que a recepção da filosofia e da literatura devem ter. Deste modo, cremos que tomar, nomeadamente, a linguagem do Wittgenstein das Investigações como pura e simplesmente mais fácil ou acessível do que os neologismos heideggerianos é redutor e pouco rigoroso. Nem nos parece ser essa uma exegese minimamente fiel que possa ser retirada deste Parnaso por força a pensarmos com ele.
- M. S. Lourenço, como dissemos, deixa-se ir em derivas que dificultam afirmar, proprio sensu, que haja um tema específico ou definidor em cada ensaio. É a curiosidade que prevalece e influi na semântica e no fazer poiético. Daí que não haja conclusão final totalizadora ou com propósitos herméticos em cada parte do Parnaso, porquanto a existência reguladora de uma causa primordial aparece posta de lado – causa esta que, em nossa opinião, não pode ser tida como sinónimo da(s) essência(s) em Heidegger. Se houver circularidade, tal não significa imitação mas abertura que acelera a vibração pulverizadora da fatalidade, sendo, por isso, susceptível de integrar a ordem do símbolo.
- Assim, o desiderato musical visa sublinhar o ambíguo e intraduzível em fórmulas redutoras e rotuláveis. Este desencadeamento é necessariamente imperfeito, incompleto e instável; mas ainda bem que o é, uma vez que somente com essa feição descodificadora as fendas se podem ir metamorfoseando na multiplicidade inacabável do possível.
Bibliografia
Heidegger, Martin, Caminhos de Floresta (2014), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
Lourenço, M. S., O Caminho dos Pisões (2009), Lisboa, Assírio e Alvim
Ricoeur, Paul, Temps et récit – Tome 1 (1983), Paris, Éditions du Seuil
Ricoeur, Paul, Temps et récit – Tome 3 (1985), Paris, Éditions du Seuil
Steiner, George, A Poesia do Pensamento (2012), Lisboa, Relógio D'Água Editores
Wittgenstein, Ludwig, Tratado Lógico – Filosófico* Investigações Filosóficas (1995), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian