Caderno 4: Modos de escrever
/Caderno 4
Modos de escrever
editado por Tatiana Faia e Victor Gonçalves
Enfermaria 6, Lisboa, novembro de 2017, 96 pp.
Capa de João Concha
8€
Carla Diacov
Daniel Francoy
Fernando Guerreiro
Gonçalo Marcelo
João Bosco da Silva
João Concha
João Pedro Cachopo
Luís Quintais
Miguel Zenha
Patrícia Lino
Paulo Rodrigues Ferreira
Pedro Braga Falcão
Tatiana Faia
Victor Gonçalves
Victor Heringer
Introdução
Tatiana Faia e Victor Gonçalves
George Steiner, prolongando o pensamento de Jorge Luis Borges, refere que a “opressão pode ser a mãe da metáfora”. E a metáfora não é somente um lance rizomático que translada o sentido de um ponto linguístico para outro (com subtis, mas importantes, alterações, claro), ela está no nascimento (mais do que na origem) de toda a escrita que vale a pena, mesmo da que tem um cariz mais científico. Ora, quisemos com este Caderno, exibindo uma certa linha de continuidade, pelo menos no espírito, com os três números anteriores, desafiar um conjunto heteróclito de autores a escreverem sobre modos de escrever, o seu ou de alter-egos, a buscarem e revelarem os pontos cegos onde aparecem, às vezes em milagre, os primeiros esboços de grafemas, numa irreprimível intensidade metafórica, porque no início estão as forças inventivas. O pedido foi formulado nestes termos: “Exm@ senhor@, permitimo-nos convidá-l@ para escrever um pequeno texto para a edição impressa do Caderno 4 da Enfermaria 6, com o título, orientador, de MODOS DE ESCREVER. Pretende-se que os autores, dentro do horizonte de sentido que elegerem (prosa, poesia, ensaio, literatura, filosofia, direito, dramaturgia, desenho...) pensem e revelem maneira(s) de escrever (porventura as suas): técnicas, locais, rituais, inspirações... Aquilo que permita vislumbrar partículas da escrita de sangue dos colaborares desse Caderno, sem com isso cairmos na coscuvilhice banal.”
E já que falamos na procura de uma certa perspectiva, numa das imagens incluídas em On Reading, um livro do fotógrafo húngaro André Kertész, pode ver-se um rapaz sentado a uma mesa austera, em tronco nu num dormitório. Filas de beliches alinham-se atrás dele e pela janela completamente aberta a que está encostada a mesa entra uma luz clara. A fotografia foi tirada em 1972 na Martinica. Há um livro aberto sobre a mesa, que é o único objecto para lá do mobiliário que se vê na imagem. Não há mais ninguém e o cuidado do fotógrafo em não perturbar o leitor ficou inscrito, acidentalmente ou não, no ângulo da distância a partir do qual vemos a imagem do rapaz. Isto causa um efeito, ao mesmo tempo, de distância e intimidade.
Queremos pensar que esta perspectiva não é alheia aos textos que aqui se coligem. As contribuições que aqui se reúnem traçam um itinerário através de filmes, ruas que se perdem e a que se regressa, fotografias, livros lidos, obsessões, afirmações que podem ser reconduzidas a práticas pessoais ou circunstâncias biográficas. À possibilidade de resposta a essa hipotética pergunta, qual a origem da escrita?, contrapõe-se uma polifonia de soluções que jogam com a expectativa dos leitores. As respostas que recebemos não foram, de todo, as mais evidentes. Mas talvez que na exposição das diferentes oficinas que estão aqui em causa se desenhe algo um pouco mais perene do que a mera enumeração das idiossincracias de cada autor (como se verá, em muitos dos textos não é exactamente o autor a criatura mitológica para ser encontrada no centro): o assumir de uma determinada perspectiva ética. A nossa esperança é que essa perspectiva faça pelo leitor o mesmo que a distância inscrita nessa fotografia tirada há décadas por um fotógrafo húngaro em viagem, que no fundo não é assim tão distante do ofício de escrever: dar uma certa perspectiva, deixar espaço para o trabalho do leitor, ser um pouco misteriosa. Numa nota de rodapé a Steiner, metáfora é tudo o que, incluindo uma certa perspectiva, a transfigura. Enquanto editores deste caderno era sobretudo disso que estávamos à procura.