Niilismo 1/c. 10 Selfies

Las Meninas, 1970, Equipo Crónica

Cont. http://www.enfermaria6.com/blog/2015/7/26/niilismo-0c-10

O narcisismo, até pelo mito epónimo que o originou, é um indício quase incontestável de decadência, deslocamento maníaco do valor da alteridade para a mesmidade, hipertrofia do eu. Sócrates não se venerava e Cristo tinha mais que fazer, ambos viveram, embora com estilos e objectivos diferentes, para salvar os outros. Esta dupla matriz do Ocidente não foi, contudo, capaz de resistir às pulsões de auto-adoração, e aqui estamos nós no paroxismo da auto-representação como forma de niilismo, isto é, da valoração espasmódica de si-mesmo, exaurindo para isso os valores mais tradicionais do cuidado pelos outros e pelo mundo.

Chegamos então à Selfie (fotografia que alguém toma de si mesmo, em geral com um smartphone ou uma webcam, partilhada depois numa rede social). Se alguns consideram esta prática uma moda passageira (passe o pleonasmo), outros vêem nela a atitude fotográfica mais representativa da actual expressão visual. Filha do auto-retrato, na pintura ou na fotografia, a moda Selfie expandiu-se com a massificação do smartphone e o uso das redes sociais, mas foram os utilizadores que forçaram a conexão entre o 3G e a Selfie, os gurus da internet não imaginaram essa tendência. Neste sentido, ela foi uma invenção plebeia. Popular e jovem, sobretudo para a “geração Y” dos 14-25 anos, adita ao exercício de auto-representação e divulgação na webesfera (comunicar-se sem entraves), imitando algumas estrelas do star system. Ora, como todos sabem, os jovens fazem sempre tudo mal, desconstroem a bela ordem social, aburguesada, e experimentam coisas que os mais velhos e sérios ridicularizam.

Mas, coisa estranha, a partir de 2012/2013 a Selfie conquista outras faixas etárias, complexifica-se, incorpora a ironia, torna-se tendencialmente auto-irrisória, define, muitas vezes em contracorrente, certos traços estéticos... Assume a dificuldade da eficiência, retira-se do “eu” e abraça a sociabilidade (o colectivo começa a predominar). Embaraça assim os críticos que viam nela apenas uma manifestação oca de narcisismo (a propósito, Baudelaire, 1859, denunciando o daguerreotipo: “A sociedade imunda dirigiu-se com um só Narciso para contemplar a sua imagem trivial sobre o metal.”). Por outro lado, se muitas Selfies representam seres irrealmente formosos (formosura tecnológica mais do que ontológica), talvez o critério estético do belo seja nelas cada vez menos relevante. Na maioria dos casos, vêm a nós como rastilho para a interacção discursiva, uma Selfie desenquadrada, estranha, disforme, bem nutrida de auto-irrisão... terá mais sucesso do que outra imaculada. Uma estética falhada sublinha quase sempre a sua dimensão pessoal e autêntica.

Desta forma, o narcisismo niilista da Selfie transmutou-se, nas devidas proporções é claro, numa forma de comunicação que busca a autenticidade e o bom humor de não nos levarmos muito a sério e nos comunicarmos em veracidade. Houve, pois, mais uma descoberta, ou criação de valores saudáveis do que a rejeição estéril de antigos valores humanistas (recato, abnegação, interioridade, altruísmo...).