Niilismo 3/c.10 "Dirty Corner"
/Merleau-Ponty, em Sens et non-sens: “nem para o artista, nem para o público o sentido da obra é formulável de outra forma que não seja pela própria obra”. Que significa isto? Que nada do que o artista, para muitos a incarnação da omnipotência, ou o público, considerado o mestre do sentido por outros tantos, possam dizer interessa realmente. Elege-se agora o soberanismo da obra, liberta das diferentes dominações que o copyright parecia ter domesticado para sempre. Lolita instrumentalizou Nabokov e agora vive por si.
Certo, este gesto discursivo é também um fio, mais um, da teia complexa, feita de relações agónicas, do mundo da arte. Mesmo quando Paolo Sorrentino (La Grande Belleza, óscar para o melhor filme estrangeiro em 2014; que Cannes acha, no entanto, um “Resnais para parvos”), diz: “Para mim, a beleza e a verdade estão juntas”, recuperando um platonismo que julgávamos perdido, continuamos no registo da performance artística, não de uma tese falsificável.
O campo da arte permite, pois, múltiplas abordagens, trouxe aqui duas de uma paleta infinita de possibilidades. Porque o que pretendo discutir, prolongando a linha de pensamento sobre o niilismo, é a vandalização da instalação Dirty Corner de Anish Kapoor, agora nos jardins do palácio de Versailles. É a terceira degradação, na primeira foi manchada com tinta, maculando as formas originais para vincar um desagrado estético, talvez artístico e também ideológico (a obra, informação do autor, simboliza as partes íntimas da rainha Marie-Antoinette). Este acto subscreveu à sua maneira um slogan muito disseminado: “Uma criação feia na sua realização e chocante na sua significação.” As outras vandalizações aconteceram já durante este mês de Setembro, apesar da vigilância policial. Têm um carácter anti-semita (a França está contaminada por esta forma de racismo), monárquico e, aparentemente, teológico.
Se a primeira degradação foi reparada, agora Anish Kapoor quer manter as mais recentes, tendo os guias apenas de referir o que foi acrescentado à peça original. Bem dentro da lógica caleidoscópica da apreciação artística contemporânea (com ligações de sentido ao objet trouvé/ready-made L.H.O.O.Q de Marcel Duchamp e, mais próximo, às degradações de várias Fontaine de Pierre Pinoncelli), Kapoor pensa que os grafites se inscrevem de pleno direito na obra. Tanto mais que se limitam a prolongar o sentido provocatório que ele próprio iniciou com essa instalação ao esventrar os jardins do palácio de Versailles e representar de forma um pouco brutal, até pela escala e material usado, a força política da vagina real. Por outro lado, estas intervenções atraem os média, reforçando a divulgação da obra. Mas há aqui uma tensão entre esta tolerância artística calculada, talvez oportunista, e a vontade do Estado francês em reprimir mensagens de ódio, sobretudo as anti-semitas e as anti-islâmicas. Assim, parece contraditório permitir a permanência dos tags anti-semitas na obra. Mas, por outro lado, como desobedecer à vontade de Kapoor e apagá-los sem levantar a suspeita de um qualquer processo de censura?
Esta dissonância, incapacidade de escolher sem arrependimentos uma opção, vive em grande parte do carácter polémico da arte contemporânea (em si mesma ou devido à incompreensão dos espectadores), provocando frequentemente reacções viscerais, nos detractores tanto quanto nos defensores. Li há uns tempos, o que considero ser o horizonte conservador de apreciação estético/artístico: esta arte introduz na vida social a histeria e a perda de referências edificantes. Não querendo agora discutir esta posição, mas reconhecendo a dificuldade da arte contemporânea em promover o bom humor, ela tem a força de obrigar a pensar quer a ontologia da obra (será, por exemplo, que, neste caso, os grafites a reconfiguram?), quer a função da arte (estimulante, criadora de sentidos, indústria elitista, afrodisíaca, representante do belo, emancipadora, caprichosa, decadente...).
Enfim, onde quero verdadeiramente chegar (vive em mim um impulso para chegar a algum lado) é à ideia de que um acto considerado niilista (degradação de uma obra de arte) se transformou, em si e por si, numa intervenção de suplementação estética e artística que acrescenta valor à obra original. Claro que se pode discutir esta conclusão, mas confiemos em Kapoor, um autor imerso no espírito da arte contemporânea, aceitemos como verosímil que a peça original (que só o era em parte, uma instalação renova-se quando muda de lugar) ganhou densidade, complexidade e intensidade estéticas; é agora uma obra de arte com mais poder crítico, correspondendo às contradições do mundo social e político, capaz de mediatizar vários campos da realidade, aproximando-se de uma “obra de arte total”.
Passagem do aparente niilismo à afirmação de um horizonte de sentido que supera as forças negativas que pareciam apoderar-se da instalação.