Niilismo 4/ c.10 Tatuagens
/I
Adenda ao meu mini-ensaio sobre a vandalização de Dirty Corner
Um artigo de Vanessa Rato para o jornal Público (20/09/2015) reproduz algumas declarações com uma semana de Anish Kapoor, quando ainda pensava deixar Dirty Corner ser suplementada por graffiti, autorizado pelo Palácio de Versailles (“Deixar ou apagar as inscrições feitas por terceiros é um privilégio que, à partida, assiste a Kapoor”). A instituição não arriscou mexer numa obra protegida pelas leis da propriedade intelectual. Kapoor, por sua vez, afirmava a Vanessa Rato: “Afinal, o que é que eu posso fazer? Qual é a coisa certa? Não sei de facto a resposta” […] “É muito vil [o que ali está]. E eu quero ver-me livre daquilo. Mas, por outro lado, talvez seja isto que o trabalho está a pedir. Como artista, chega-se ao estúdio, tem-se uma ideia, acha-se que se está a fazer uma coisa específica, depois outra coisa acontece. Por exemplo, entornamos qualquer coisa e chegamos à conclusão de que, na verdade, a obra funciona melhor assim... Temos de seguir esses momentos. No caso de Versalhes, é a segunda vez que tenho um desses momentos. Tenho de me perguntar: sigo o momento? Não sigo? O que faço? Qual é a coisa certa a fazer?” Pelo que disse a outros órgãos de comunicação social, pretendia realmente “seguir o momento”.
Entretanto, no sábado, 19/09/2015, os tags anti-semitas inscritos na instalação foram cobertos com um pano preto por ordem da justiça francesa, que impôs a Versailles a supressão imediata das inscrições acrescentadas à “escultura”. Para os juízes, “a liberdade de criação e de expressão artísticas implica o respeito do direito moral de qualquer autor sobre a sua obra”, mas quando se expõe publicamente, “esta liberdade, deve conciliar-se com o respeito das outras liberdades fundamentais.” Anisch Kapoor só poderia lamentar-se, fê-lo no dia seguinte numa entrevista ao Le Figaro: sente-se como uma “rapariga violada que é condenada [por isso], dizendo-lhe para se ir vestir” (Kapoor é de origem indiana), não compreende como ainda se desconhece quem, e como, vandalizou a obra, assegurando que os seus advogados o defenderão enquanto artista agredido no solo da República Francesa.
Portanto, o espaço de liberdade por excelência que devia ser a produção artística tem de conformar-se, pelo menos em parte, à escala de valores vigente, neste caso a moral e a política interferem claramente na criação e expressão artísticas. L’art pour l’art, como aliás bem viu Nietzsche, é apenas uma frase, já que também ela está condicionada pelas linhas de sentido estabelecidas, embora tenha uma margem para experimentar e provocar, deslocar e chocar maior do que qualquer outro campo. Isto desmente em parte a tese que Paul Ardenne expressa em Extrême: esthétiques de la limite dépassée, segundo este autor passámos de uma “cultura do sentimento a uma cultura da emoção”, por conseguinte tudo se radicaliza, os limites são constantemente ultrapassados, os efeitos arrebatadores são mais relevantes do que os dispositivos de codificação (mais o dionisíaco do que o apolíneo). O problema, ainda para Ardenne, é que o extremismo nos impede de pensar, submergindo-nos num mar tempestuoso, violento, de emoções que nos sufocam. Bom, esta decisão da justiça francesa vem pôr um pouco de água na fervura.
II
Frequento uma praia em São João da Caparica que acolhe muitos jovens (já na meia-idade) da classe média, hedonistas ponderados que conseguem conciliar a prancha de surf e os banhos intensos de sol, nunca acompanhados por livros decentes (clássicos ou semi-clássicos), com empregos de 40 horas e muito respeitinho pelo chefe. Há cerca de 10 anos surgiu a moda das tatuagens, rapidamente disseminada, como qualquer fenómeno do género, por cerca de 50% da população banhista. Os corpos começaram a plasmar frases, símbolos e desenhos, alguns coloridos (a paleta de cores é critério de distinção). Tornou-se motivo de conversa e soldou laços identitários, excluindo-se fácil e assertivamente os puristas da pele nua, conservadores irremissíveis.
Recordemos que no Ocidente a tatuagem era um sinal de marginalização voluntária, uso da pele como forma de reforçar a margem onde existiam ou maneira de expressão e codificação dentro de um sistema forte de interditos (e.g., prisioneiros). Era ainda marca de distinção pela participação num acontecimento limite, os soldados do ultramar marcavam essa passagem pelo inferno com a data e o local, outros expunham a pertença a corporações militares especiais. A lógica geral era, pois, de distinção e de identificação, havia uma sentido neo-tribal em cada desenho indelével no espaço subcutâneo, mas de superfície, protegido da erosão, mas visível. Pelo contrário, hoje as tatuagens, embora mantenham um fio ténue de comunitarismo, expressam sobretudo um individualismo radical: redesenhar o corpo biológico, usando-o como montra do gosto e interesses pessoais.
Por outro lado, há uma contradição evidente no fenómeno actual das tatuagens: é um campo da moda que implica o corpo; mas ao mesmo tempo parece funcionar em antagonismo com ela, devido ao seu carácter tendencialmente indelével a tatuagem é “para toda a vida”. Se a moda vive na efemeridade e na vertigem da mudança, a perenidade das tatuagens parece opor-se ao ritmo alucinante das “novas tendências”. Embora consiga preencher melhor a vontade de realçar a singularidade e a autenticidade do que, e.g., o vestuário. É verdade que as impressões cutâneas seguem em geral páginas de catálogos pré-definidos, mas ainda assim há mais heterogeneidade do que nos outros campos da moda ligados ao corpo.
Posto isto, parece que as tatuagens, à primeira vista mais uma variação sem autonomia do mundo e da indústria da moda, desse niilismo estético que numa lógica autofágica hipertrofia o valor de objectos (novas colecções) para pouco depois os atrofiar (démodé); as tatuagens, dizia, reintroduziram no horizonte de sentido dos tempos “hipermodernos” o valor da durabilidade. É verdade que a novíssima tendência, contra o que acabei de dizer, está em tatuar com produtos e técnicas degradáveis. Se esta via ganhar amplitude, regressaremos ao niilismo da “mudança pela mudança”, por enquanto gozemos esta valorização de gestos que criam compromissos longos, ainda que por vezes bastante patéticos ou de gosto muito duvidoso.
P.S. Há umas semanas conhecemos uma bela pessoa numa prestigiada loja de sapatos em Lisboa. Chama-se Poliana (exemplo da liberdade onomástica brasileira) e tem tatuagens visíveis que emolduram com elegância um corpo bonito. Essas marcas discretas parecem pequenas portas entreabertas para o interior da sua biografia. Indícios ténues que reforçam os fios da sua identidade e permitem ao espectador, que não é voyeur, imaginar partículas de vida mais íntima. Tudo feito num magnífico claro-obscuro, sintoma de elegância. Bem diferente do registo vulgar que muitos tatuados imprimem na pose sobranceira com que olham a frugalidade da pele nua.