Charles Bukowski, ou depois de ler a imortal literatura do mundo

1.

 O mal de grande parte da literatura é tentar ser complexa. Quando tenta não ser, falha. É pouca a literatura que consegue ser não-complexa e ser, ao mesmo tempo, literatura. É claro que uma leitura na diagonal – sendo aquilo que mais vezes acontece com a maior parte dos escritores que lemos – poderá induzir o leitor em erro, fazendo crer que a literatura não-complexa, que tem o privilégio de estar a ler, é ridícula e não é boa literatura. Um exemplo: Charles Bukowski.

Bukowski é associado à condição de marginal, de proscrito. É também associado a um estilo de vida que muitos consideram pouco aconselhável à saúde. Esse é o primeiro erro: acreditar que Bukowski é só álcool, mulheres e fornicação. Não vou dizer que o não seja. Grande parte da sua obra gira em torno destes três temas. Contudo, eles são apenas o ponto de partida para muito mais.

Charles Bukowski é, sem dúvida alguma, alguém que conhece profundamente o ser humano. O ser humano é o principal personagem da obra bukowskiana. O ser humano e a sua relação com o mundo. Disso não devemos ter a menor dúvida. O seu alter-ego, Henry Chinaski, é disso prova: «Bukowski created a literary persona named Henry Chinaski as a vessel for expressing his alternative view of the world, (…) Trough Henry Chinaski, Bukowski is able to attempt to reveal the absurdity of the world with an element of distance and without succumbing to despair.» (Daniel Bigna).

É claro que, para muitos, Chinaski não preenche os requisitos necessários para ser um verdadeiro personagem, isto é, segundo o cânone, Chinaski não possui a complexidade nem a profundidade, por exemplo, de Ahab, Meursault ou Raskolnikov.

 

2.

Charles Bukowski nasceu em Andernach, na Alemanha, em 1920, filho de pai germano-americano e mãe alemã (o avô materno de Bukowski era um ex-oficial do exército alemão). Os primeiros três anos de vida são passados na Alemanha, em contacto directo e diário com a língua alemã. É então que a família decide mudar-se para os Estados Unidos da América, escolhendo a cidade californiana de Los Angeles como destino final.

O início de vida num novo país não foi fácil para Charles Bukowski. Foi em Los Angeles que ele teve, pela primeira vez, contacto com a língua inglesa, pois até então, em sua casa, só se falava o alemão. A relação com o pai também não foi fácil: era um homem violento, arrogante. Em contrapartida, a mãe era submissa à vontade do pai, nunca se opondo a nada que ele decidisse, por mais estranho e descabido que fosse. Isso criou em Bukowski um grande e poderoso sentimento de revolta, pois a única pessoa que o deveria defender contra os ataques de fúria do pai, não o fazia. Bukowski chegou mesmo a dizer que o pai foi quem o ensinou a escrever, a ser escritor. O pai parece ser o motor de arranque de toda a escrita de Bukowski. Poderemos perguntar: sem a “ajuda” do pai, Bukowski teria sido escritor? A resposta é sim.

Bukowski, como um dia referiu o seu editor John Martin, nasceu com a consciência de que era um génio. Publicou pela primeira vez em 1944, com vinte e quatro anos, mas só aos trinta e cinco é que começa a publicar poesia. É a poesia que constitui grande parte da bibliografia do autor, apesar de ter publicado seis romances e várias colectâneas de contos, perfazendo, ao todo, mais de quarenta e cinco livros publicados em vida.

 

3.

Há um problema com os génios: dificilmente lhes perdoamos toda e qualquer “falha”, ou todo e qualquer “defeito”. O génio deverá ser um paladino da ordem e do socialmente aceitável. Ao génio não é permitido o desvio. Daí, talvez, o facto de a genialidade e a loucura andarem de mão dada. A fronteira, entre ambos, é muito ténue. O que é ser génio? O que é ser louco? Salvador Dali seria um génio-louco ou um louco-génio? Bukowski tinha consciência de tudo isso. De outra maneira não se entende a sua iconoclastia. A título de exemplo: a sua relação com as mulheres. Esta poderá ser justificada tendo em conta essa mesma iconoclastia, que Bukowski tanto prezava.

Sobre as mulheres muito se poderá dizer: machista, misógino, sexista. Na altura em que Charles Bukowski escreveu e publicou os primeiros romances (Correios e Factotum), os ideais da segunda onda feminista (iniciada nos anos 60) estavam a ganhar força na sociedade. Era, por assim dizer, “moda”. Ora Bukowski era tudo menos de modas, e talvez tenha visto uma oportunidade única para irritar uns quantos (ou umas quantas), fazendo justiça à fama que começava a granjear. No entanto, não é de todo errado pensar que a hostilidade em relação às mulheres é fruto da sua infância, fruto da relação de um pai obsessivo e de uma mãe passiva. E não podemos esquecer que toda a obra de Bukowski gira em torno de uma certa marginalidade dominada por homens: «I his underground society he describes a purely masculine world, in wich women are hardly more than splashes of a puddle through wich hardy fellows traipse, mostly drunk, or in wich they wallow.» (Karin Huffsky).

 

4.

Bukowski recusa a complexidade da maior parte da literatura Beat (lembremos, por exemplo, os romances de William S. Burroughs) e a metaficção do experimentalismo pós-moderno que grassou na literatura dos anos 60. Em vez disso, Bukowski opta por uma literatura livre, simples. É claro que nada disto é inocente. A pretensa simplicidade da escrita de Charles Bukowski pretende ser uma resposta àquilo que Gay Brewer designa como «collegeboy finger exercises». É claro que o autor de Mulheres sabe que expondo o seu trabalho à crítica o mesmo será comparado com aquele dos seus contemporâneos. Daí, talvez, a opinião generalizada de que a escrita de Bukowski é repetitiva, pouco “trabalhada” e muito pouco intelectual.

Mas a vida, afinal, não é repetitiva, pouco trabalhada e muito pouco intelectual?