As aventuras do Senhor Lourenço
/Drama, em três actos
por António Lisboa
(preâmbulo I)
Lourenço é um homem com qualidades e nunca fugiu a ser ele. Mas perde-se, como muitos outros, na amálgama de seres anódinos (por força das circunstâncias) que todos os dias sobrevivem. Uma vez disse-me que poderia perfeitamente existir para sempre sentado num banco da Avenida da Liberdade, mesmo sabendo que teria a qualquer momento de se levantar. Uma espécie de “esplendor do nada”.
[se por acaso lesse o que acabo de escrever, chamava-me “parvo” e “traidor”, aconselhando-me a “olhar-me ao espelho” (gosta particularmente deste último sintagma, pilar das suas contra-argumentações)]
Há muito que perdeu o entusiasmo por percorrer Lisboa à procura de pérolas interiores que só se manifestam, em puro acaso, no meio da uma rua ruidosa ou nos cantos dos cafés obscurecidos pela moda neo-romântica, acessíveis a qualquer passageiro optimista de Tuc-Tuc. Em tempos tudo foi diferente – gosta ele de pensar –, “quase não havia quem me parasse”. Ainda assim, embora falar-se disto o aborreça, parece que só por uma meia dúzia de vezes se sentiu reconhecido.
Adora – creio que é uma adição – rememorar e reverberar. Não com aquela nostalgia pavloviana de velho a declamar “no meu tempo é que era”, para ele é mais um gesto do que chama “misticismo silogístico”. Um dia contou-me que essa mistura de lógica e espiritualidade tinha muito simplesmente, mas eficazmente, substituído o álcool que consumia diariamente. É verdade que podia ter começado a fazer desporto – lembro-me agora que em 2000 ou 2001 andou metido com a malta do futebol lá da escola – ou contraído matrimónio, preferiu antes, talvez por comodismo, trabalhar o seu já inato anti-cartesianismo, juntando corpo e mente, lógica e epifanias – ilusões, como sabemos.
Para quem o conhece pela primeira vez, Lourenço é irremediavelmente desinteressante, mesmo fisicamente (40 anos, já meio calvo, arqueado, barriguinha, um branco doentio que dura até ao solstício de Verão, olhos, que aliás raramente vemos, de um castanho banal, mãos sapudas e, sobretudo, uma voz incompreensivelmente inofensiva). Nada do que diz transmite vitalidade, hesita permanentemente em entrar ou sair das conversas, fica hirto, embora curvado (semi-círculo rígido), à espera de um silêncio mais prolongado do interlocutor, insere então um assunto que tanto pode seguir, por sentido de vassalagem, o fio condutor da conversa como deslizar para campos totalmente inoportunos. Expliquei-lhe como isso era perturbante, respondeu-me que raramente ouvia o que lhe diziam, mas não o fazia por mal. No fim dos encontros despede-se com um aperto de mão tão mole ou com dois beijos tão imperceptíveis que muitos o esquecem nos dez segundos seguintes. Em resumo: “é ténue e rasteirinho”.
[como posso então chamar a isto “As Aventuras do Lourenço”, mesmo que seja “do” e não “de”, mesmo que o termo “aventura” remeta hoje mais para um parque de diversões do que para uma volta ao mundo ainda cheio de mitos? Além disso, sei que nenhum herói se pode chamar “Lourenço”, como consta da acta lavrada em reunião da Associação Nacional dos Ateliers de Escrita Criativa. Enfim, a ficção deve ter uma boa dose de ironia, só assim reforça a ambiguidade, abrindo para peripécias inverosímeis]
Porém, Lourenço é professor de filosofia.
[porquê “porém”?, conheço tantos que nunca foram além de uma compreensão imperfeita da linha menos complexa da história da filosofia]
Por detrás da impressão frustrante que frequentemente provoca nas pessoas emerge um minúsculo arco-íris capaz de entontecer alguns ingénuos. Transporta na algibeira citações engraçadas, vibra ligeiramente com o anedotário filosófico clássico e transmite alguma credibilidade. Pensamos: “figura banal, mas tem um certo charme, parece desprendido do histrionismo inconsequente que baralha a vida das pessoas normais, talvez haja ouro no interior desta carapaça sem jeito”. Se é puro engano? Não, há de facto pequenas pepitas de metal precioso na consciência e corpo do Lourenço, uma ou outra análise mais arriscada, quase inteligente, certa modéstia crística, frugais apontamentos estóicos, quatro ou cinco caracóis que rebelam o pouco cabelo que lhe resta, a possibilidade de ter uma família que o admira secretamente, o seu passado de tesoureiro de uma Associação qualquer (alguns pensam, erradamente, ser a dos alunos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).
[esta complexidade encoberta foi a razão por que o escolhi para personagem principal, tudo girará à sua volta, verão que se transformará num aventureiro destemido e admirado]