Ao poeta que me envia árias avulsas

andas muito lírico, amor.
não compreendo
a tua necessidade
de ouvir ópera sem parar, isso
não existe essa grandeza dos afectos
essa adolescência momentânea
os corpos rosáceos
sob um tecto de estrelas
isso não existe, meu amor.
agarra-te ao trabalho no supermercado
abraça a dormência da rotina
esquece os romances
deixa de escrever e sobretudo
não ouças mais ópera que isso
não existe, amor, e se existir
não é perto de nós.
paga a renda, come chocolates,
consolida, filho, consolida,
que o inverno vai ser longo e esses cravos
na parede e essa força
e esse amor universal não existem
nada disso existe
por isso agarra bem os talões de desconto,
serão a maior carta de amor no teu correio,
ajuda as velhas a atravessar a rua
bebe até cair
mas só a partir das oito da noite
que não te deixam sair antes do trabalho,
larga a literatura
deixa os clássicos para reciclagem
mas se for poesia
queima-a:
o verso livre é perigoso.
larga os amores, as flores e os cravos
agarra-te ao boletim de voto e às revisões
constitucionais mas só se te deixarem
sair do trabalho para as urnas.
a última vez que fodeste a sério
eras adolescente e já nem sabes
se foi assim tão bom mas
não te preocupes com mais,
o prozac não esquece a alegria,
acaba o cigarro, abotoa o colarinho
toma a certeza de que só essa cadeira
é o teu lugar no mundo:
volta para dentro sorriso
amarelo ombros
encolhidos cabeça
baixa, barba feita que
não deixam que cresça porque
fica mal, fica-te tão mal
esse pensar divergente
mas sobretudo
larga a ópera, que
andas muito lírico.

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