Uma estrela há-de chamar-te pelo nome

O rapazito procurou o aconchego da música, batendo com as mãos nos joelhos descompassadamente. O homem sentira o garoto silencioso e meditabundo que parecia caminhar sobre as notas musicais que soltava. Deu graças a Deus por o miúdo estar a bater com mãos de algodão. Perturbava-o o ritmo fora do tempo. O garoto não acertava, mas pelo menos não o ouvia. Esparramado no chão, cada vez que acabava de tocar uma música, içava uma garrafa de bagaço até à boca, que sorvia o néctar ardente como a sarjeta limpa a água num dia de chuva intensa.

O casario apertado mantinha-se impermeável ao sol naquela altura do dia. As mulheres passavam aprumadas sob o peso de cestas de peixe equilibradas por anos de experiência. As pernas de Alzira começavam a mostrar marcas de uma vida de trabalho. Aladas na juventude, aos encontrões saborosos nos bailes de Sto. António, seguravam sem vacilar o ímpeto do músico endiabrado que um dia lhe escrevera uma canção. Se as paredes brancas e enluaradas do bairro pudessem falar…Terminaram quando a rapariga se aproximou do Toneca comerciante, que a instalou num 2.º andar da Morais Soares. Não trocavam o olhar quando ela passava. Tantas ruas que o bairro tem e ela havia de passar sempre por ali. O garoto descolou a cabeça dos joelhos à passagem da mulher, saindo da letargia em que facilmente mergulhava. O homem olhou-o e, com a boca ainda quente do último trago, bocejou palavras que o miúdo não percebeu. O homem acariciou as cordas da guitarra como outrora os cabelos negros de Alzira e tocou acordes ásperos e bruscos antes de iniciar outra canção.

A voz clara, mas ligeiramente desafinada pelo consumo de bebida, cortava o ar, ecoando pela rua afora. Era doce e dolente como os dedos que puxavam as cordas com mestria. Vizinhos havia que lhe apreciavam o cantar e que, embalados pela doce brisa da saudade que aquela voz límpida libertava, recordavam dias de sol e os primeiros beijos dados entre mergulhos no rio. Outros havia que o apelidavam de inútil e carregavam nos insultos quando a voz do homem lhes acariciava os sargaços da memória.

Dedilhava de olhos fechados enquanto o miúdo batia surdamente nos joelhos. Trocavam poucas palavras; não por timidez ou descortesia, mas porque as palavras não escasseavam naquela rua. Entre ambos havia as palavras empurradas pelas melodias pungentes, e algumas delas tinham uma força desconhecida para o rapaz. Para ele, ser adulto significava conhecer os sentidos de todas as palavras. Notara que algumas traziam lágrimas aos olhos, ao passo que outras faziam libertar vagos sorrisos de encantamento. Aquele homem preferia-as tristes e acabrunhadas. O rapaz guardava sempre um respeitoso silêncio. Era o único espectador naquela tarde. Pelo menos era o mais entusiasta, já que os outros apenas espreitavam momentaneamente, espetando as cabeças imóveis através das ombreiras e das molduras das janelas como tartarugas que ostentam o seu tédio crónico. Quando anoitecia viam-se as chamas ardentes dos cigarros como pirilampos vermelhos sem sítio para onde ir.

Por vezes o miúdo depositava o boné à frente do músico, mas apenas os parcos turistas americanos que por ali passavam, atraídos pela triste melodia de um povo a preto e branco, o presenteavam com alguns escudos atirados com insolente admiração. Um dia recebeu um dólar, que levou à boca como via fazer no cinema, sem que soubesse bem porquê.

Como o brilho das estrelas que na noite cai
Jamais o meu amor por ti se esvai

O miúdo molhou os lábios com a língua e sentiu o cheiro das sardinhas que assavam à porta de uma casa adiante. Esticou as pernas e olhou o céu. Fê-lo pela primeira vez naquele dia. Estava a entardecer e apreciou as estrelas cintilantes, que conseguia descortinar entre o frouxo foco de luz que bruxuleava sombras nas paredes e nas pedras húmidas da calçada. Não ouvia o seu nome gritado através do casario e transportado pelas finas veias das ruas do bairro. Não estava ninguém em casa. Provavelmente não jantaria, como tantas outras vezes. Acontecia, então, ser levado pelo músico até uma casa de pasto na Baixa, no final de um dia repleto de turistas generosos. O boné estava quase tão vazio como o estômago.

Ouviu passos na calçada quando o homem parou a música para pôr fim à garrafa que lhe tinha feito companhia durante a tarde. Olhou o vulto que se aproximava com passos temerários e dolentes. Produziam um som de castanholas nas pedras gastas. A luz desenhou um perfil de mulher. No céu as estrelas brilhavam intensamente. O homem calou-se e o miúdo recolheu as pernas, colando o queixo aos joelhos. A brisa levantou-lhe uma nesga de cabelo louro e voltou a pô-la no mesmo sítio. Não precisou de olhar o homem para perceber que este estava em sentido. Os passos calaram-se à frente deles e o miúdo viu um par de pernas rijas que terão sido bonitas sem as meias grossas que as descaracterizavam e sem o aspecto de toscos troncos de carvalho ressequido pelo cansaço e sofrimento. Assentes em tamancos, estavam ali firmes para receber perdão como uma mão que se estende.

Cortando o silêncio, apenas o estalar da gordura das sardinhas a assar e uma música triste que saía de um rádio e se espalhava pela noite, sob um teto repleto de estrelas num beco de espectros ávidos de luz.

 

PX, 03-08-16