Sobre o prémio Nobel da Literatura
/Estava a comer um pão com queijo quando soube que Bob Dylan tinha vencido o prémio Nobel da literatura. Não tinha manteiga.
Os prémios com manteiga sabem sempre melhor. Tornam o pão menos seco, mas não fazem bem ao colesterol.
O pior é quando a dieta que nos impuseram é à base de opiniões. Muitas opiniões. É que eu engordo facilmente.
No outro dia, só para dar um exemplo, estava a andar na rua e caiu-me uma opinião. Olhei para o chão. Estava muito sozinha, ali no solo, coitada, quase que alguém a pisava. Mas depois pensei: pobrezinha, vou pegar em ti e pôr-te na minha boca outra vez.
Era de noite, e num beco escuro alguém me olhava de soslaio. Olhei outra vez. Era impressão minha, não era ninguém.
Depois, ouvi uma voz. Falava americano. “Pedro, és tu?” Nem queria acreditar, era o Bob Dylan, mas a coisa pareceu-me artificial, porque não disse “Pedro, is that you?”. Mesmo assim fiquei bastante perplexo, pois tendo passado toda a adolescência a pensar noutra coisa qualquer, nunca soube reconhecer ícones. Se a Madona passasse por mim não saberia quem era. Essa que está viva, claro, não o fóssil.
Bom, nem queria acreditar.
“Pedro, és tu?”
Eu perguntei – que outra coisa poderia fazer? – “mas quem és tu?”
Ele respondeu: “então nos últimos parágrafos já tinhas admitido que eu era eu”.
“Eu?”
Fiquei confuso, mas depois pensei: bom, não me conheço assim tão bem, pode ser que algo de estranho se tenha passado.
“És tu, Bob?”
O silêncio respondeu-me torto. O silêncio responde sempre torto. Entretanto, já tinha comido todo o pão que tinha para comer, nem tinha fermento nem nada.
Sobejamente confuso, olhei para a chávena de café e pensei: “caramba, era capaz de jurar que nunca tinha falado em chávenas de café”.
Pus uma pitada de opinião e segui em frente.
Entretanto, um sujeito muito estranho começou a olhar para mim, porque o verbo começar implica que ele já lá estava.
E pensei: oh lá, aqui há gente que conhece muito bem as coisas. Mas olhem para mim, todo sujo de opiniões, estava a andar e tropecei numa. Estatelei-me...
Outros poderiam pensar que um prémio é só um prémio. Aparentemente este é “o” prémio. Aparentemente é do caralho.
“O” prémio.
Com que então há prémios. Boa, adoro prémios. Gosto de pôr manteiga nos prémios, para o pão não ficar tão seco. Aí sim emito uma opinião forte, vigorosa, viril: adoro pão com queijo.
“Pedro, és tu?”
Desculpe, meu querido poeta, não o conheço, mas estou certo de que “o” prémio vai ser muito importante para si e para os seus, e especialmente para quem não o recebeu, e mais ainda para os que acham que “o” prémio devia ou não devia ser seu.
“Olhe, desculpe, mas deixou cair esta opinião.”
Olhei para trás. Uma velhota começou a aparecer, o que é confuso, porque não se pode começar a fazer uma coisa que é surgir. Tinha razão, olhei; de facto, tinha deixado cair uma opinião.
Aparentemente – pensei – é muito importante sublinhar em voz alta aquilo que pensamos. Simular nas nossas vidas os noticiários e as/os magazines culturais do mundo. Só assim poderemos verdadeiramente apreciar um/uma bom/a sandes de queijo.
Bom. Nisto ficou tarde. À tarde, quando posso, gosto sempre de ouvir um pouco de música.
Ia a meio de uma música de que gosto muito, quando apanhei um susto imenso. Era o prémio Nobel de 1575. Era zarolho. Disse, “meu amigo, dás-me um pouco de pão?”
Disse-lhe, sim, claro que sim, conheço-te de retratos, estás envelhecido, companheiro, mas toma, claro, toma lá, gostas de pão com queijo? Isto era tudo bastante inverosímil, uma vez que anteriormente já tinha ficado definido que o narrador comera o pão todo, até ao fim, porque nunca se come o pão todo até ao princípio.
Ele disse-me: “é assim que tratas um Nobel?”
Pedi-lhe desculpa, mas em 1575 ainda era uma criança, não sabia bem que existiam prémios, achava que as pessoas simplesmente faziam – quando lhes deixavam – a poesia que podiam fazer.
“És tremendamente ingénuo”, bradou uma voz dos céus. Ou dos seus? Já não sei.
Olhei à volta, e obviamente não tinha sido o zarolho. Entretanto atirara-se com uma voracidade épica ao meu pão com queijo, que vi desaparecer com alguma pena, mas com o sentimento de dever cumprido.
“Roberto, sois vós?”
Ainda o ouvi sussurrar estas palavras. Mas, entretanto, estava na hora de sair de casa, e nunca se deve ficar em casa quando é hora de sair de casa.
Um abraço,
Pedro Braga Falcão