Dois poemas
/a manhã rimou pobre
de barcos e vertigens
ao invés disso um negro
cobrado à noite e o
vermelho arrancado ao
avesso do próprio corpo
salvo o sangue
a delinear contornos nos
baldios de nenhum rosto
o teu rosto nos antípodas
mais as sombras suicidas
que se alongam aos pares
pelo esteio das entrelinhas
ou se jogam aos carris
(os carris de linhas lembras-
-te como no antigamente)
ignorando que apesar de tudo
apesar de a loucura desculpar
quedas desvarios mãos órfãs
gritos ruivos abraços rombos
apesar de tudo
basta lembrarmo-nos
que nunca se desmorre.
“Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves.”
Carlos de Oliveira, Sobre o Lado Esquerdo
claves de sol no estendal
da pauta: a manhã como
partitura na partição do
verso desde o reverso
ao anverso anterior
antigamente as mãos moídas
por escalas de acromáticos tons
de staccato a legato o contínuo
vibrato no crepitar da semifusa
ao cordofone a apogiatura:
estilha ou estame de nylon
como ave em asterisco floco
pólen no algodão dos freixos
cuja ordem se tem confusa
a mesa ao centro a luz ao lustre
jarras de ébano violino aos molhos
depostos em memória de alguém
que talvez nunca tenha existido
o arco reteso às arcadas em
pórtico movimento: o lá afina
e desafina pela fisga do diapasão
símeis aves na manhã turva
a alma em f de aceradas cerdas
poalha resina ou rubato resignar
como nota em rima fusa
na trama que a malha cria
por arredios nós junto ao
dobre do bordão.