"como mártir diminuendo", "ruas míopes ao tacto", "e se eu morresse tanto"

como mártir diminuendo
no êxodo de uma sombra
em bucólico andamento

a maestrina arte de varar
os velos dos choupos
as cânulas das flores

a sanguínea corrente
que inflama o dragoeiro
cujas pernadas se movem

braços dançam-nos inteiros.


ruas míopes ao tacto
correr em despedaço
o nosso passo desvagar

estilhaçar o tempo em
cabeça tronco e membros
e entrar por ele adentro

como quem reza de mãos
cegas rasgadas sob um livro
e determo-nos num só verso:

o tempo é todo em dores.


e se eu morresse tanto
de novo e de velho que
de muitas mortes o meu
corpo se tingisse que a
minha boca de raízes e
torrões se entreabrisse e
descobrisse no interior
do palato uma língua
dum estrangeiro falar

e eu morrendo tanto e
tantas e muitas vezes
morrendo de vez estas
mortes tão completas
morrendo quer de saúdes
quanto de doenças morrer
meio de improviso e todo
duma morte certa.

Dois poemas

a manhã rimou pobre  
de barcos e vertigens
ao invés disso um negro
cobrado à noite e o
vermelho arrancado ao
avesso do próprio corpo 

salvo o sangue
a delinear contornos nos
baldios de nenhum rosto
o teu rosto nos antípodas
mais as sombras suicidas
que se alongam aos pares
pelo esteio das entrelinhas

ou se jogam aos carris
(os carris de linhas lembras-
-te como no antigamente)
ignorando que apesar de tudo
apesar de a loucura desculpar
quedas desvarios mãos órfãs
gritos ruivos abraços rombos

apesar de tudo
basta lembrarmo-nos   
que nunca se desmorre. 

 


 

“Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves.”
                                                                                                                                                                                                                                          Carlos de Oliveira, Sobre o Lado Esquerdo


claves de sol no estendal
da pauta: a manhã como
partitura na partição do  
verso desde o reverso
ao anverso anterior

antigamente as mãos moídas
por escalas de acromáticos tons  
de staccato a legato o contínuo
vibrato no crepitar da semifusa

ao cordofone a apogiatura:
estilha ou estame de nylon
como ave em asterisco floco
pólen no algodão dos freixos
cuja ordem se tem confusa

a mesa ao centro a luz ao lustre
jarras de ébano violino aos molhos
depostos em memória de alguém
que talvez nunca tenha existido

o arco reteso às arcadas em
pórtico movimento: o lá afina
e desafina pela fisga do diapasão
símeis aves na manhã turva
a alma em f de aceradas cerdas
poalha resina ou rubato resignar
 
como nota em rima fusa
na trama que a malha cria
por arredios nós junto ao
dobre do bordão.

as velhas novembram

 

* 

 as velhas novembram
de outubro a dezembro
em fainas novenas  
varejam os ramos com
membros canhestros
erguem-se às hastes à 
cata do fruto à flor da
ramagem sacodem-na
pra panos cerzidos  
desde dezembro anterior  
nos janeiros da apanha  
colocam-nos ao chão
no plinto das árvores  
os panos ao ombro as
talhas de azeite medas
de feno ou serapilheira
as velhas janeiram quais      
espantalhos siderados
em pássaros moveres.  

 

 

na lavoura os pais
à semeia das mães
joeiram os filhos de  
envolta com o grânulo
cereal lábios de sangue
escorrido entre as pernas
ânforas de vinho nunca  
antes bebido traçado às
escuras em cochos curtidos
contendo o mênstruo doce
dos áceres no interior líquido  
o estame amputado cerca
ao bojo regaço das mães  
enquanto elas ausentes     
amamentam os filhos por  
abortar nos embriões da
terra o útero a céu aberto  
os filhos enjeitados à feiura    
à magreza triste dos cães   
rente ao bordo das cantareiras  
donde se vislumbram defronte  
os cancros tumores brotando  
ao dependuro das árvores
das tardes doentes mais as  
velhas nos janelos a espreitar
cá para fora com os rostos
caiados de morte e uns olhos  
póstumos a anteverem o fim. 

 

 

no tronco das árvores
os sobreiros madeiros
de buxo lenhados por
velhos sem rastro de
corpo esquisso dedos   
em clave a restolharem  
no húmus na caruma  
da tarde espiralam os     
laços em enredos nós
que se lhes apertam
como gravatas ao  
pomo das maçãs.  

tentar o poema


tentar o poema
sem implicar as palavras
noite     rosto     chão
chuva     manhã     tarde
mãe     louco     escuro     
casa     fogo    árvore
mãos     boca     fome
pele     dedos     sombra                              
ave     pássaro     carne     
olhos     sangue     o teu nome
tentar o poema
sem empregar a palavra 

sem nomear o próprio
poema. 

*


A noite é em lâminas.
Luiza Neto Jorge


noite chã noite caída
noite entorno sudário
noite às arestas míope
noite prenhe e oblíqua
noite em púrpuro lio a
noite como fantasma
noite vândala noite cã
noite céptica de luares
a umbilical acuidade nos
meandros da inicial ferida
onde tudo se faz e refaz. 

(a noite é em lâminas dizias)

*


aprendi demasiado cedo: 
qualquer mesa se adequa
à artesanal confecção do
escusado e reles poema.    

«As mãos em plátana folha»

1.

 

 as mãos em plátana folha
esculpem a água nascente
da fronte ao rosto caído

crisálido rosto transeunte
as mãos em nervura ferida
percorrem do rosto a face

porquanto a face é somente
um rosto que nunca foi olhado.

  

2. 

a fruta envelhece
apodrece-lhe a cor
dentro do pote de
loiça no vime das
cestas as nêsperas
rendadas em glaucas
toalhas furtadas de
tângeras e reinetas
maçãs.

 

3. 

de casa as cântaras
à cabeça guindadas
em coroas de trapo
água ao levante a
sede a marulhar ao
aperto dos lenços o
crânio acrobata cãs 
em tear farrapos de
branco ao alaúde do
vento dedilhado em
adventos chãos de
tojo e de árvores.

 

4. 

água puxada aos furos
água choca nas fontes
a sede morre imediata
à salobre saciedade
das bocas vorazes de
língua esticada para
fora do forno na massa
do pão à côdea à coze-
dura pousam as bilhas
empinam cabaças
estalam-se-lhes as cruzes
na coluna e no peito
(da espinha ao reboco)
genuflectem sem dor.

 

5.

 do cocho sorvida
a líquida nascente
garganta embebida
em cíclicas gotas
vestidas de sangue.

 

6.

 em terra chã
nunca viram
o mar     mal
conheceram
as mães as
velhas sempre
ao colo de
ninguém.

 

7.

as velhas cardam
e acartam à antiga
abancam junto aos
cardos à sombra dos
filhos órfãos de pai
sôfregos de mãe a
pele curtida rugas
que nem vírgulas
a morte esculpida
em recto parêntese  
ao vertical sol desde
o sol de anteontem.


8.

 as velhas temem a deus
peito de fora o glabro
ventre à provecta luz
do dia amam de leite
odeiam de vinho os
filhos das outras à
noite recolhem em
flor mirrados botões
as tetas pra dentro
nos baús inchados
com idosos globos
de naftalina.

 

9.

 as velhas enlouquecem
à esquina do sol
à bainha da cal
no telheiro das casas
no mocho sentadas
pálpebras de coruja
em negro atavio.

 

10.

as velhas enxotam
aos enxames a
canalha ao correr
do vassouro na
rodilha a língua
cerzida aos trapos
junto com o vasculho
o credo deposto no
braseiro recesso as
velhas enxugam as
mãos e as mágoas
esbracejam à noite
acoitadas nos xailes
entretidas de negro
a mata-moscarem
sozinhas no escuro
o frio em lasca no
gume dos ossos.  

 

11.

 os velhos mandam-se
beirados dos telhados
daninhos como ervas
tomados pela loucura
de não quererem cair.

 

12.

 os velhos partem pinhões
nos poais dos pássaros
com calhaus nas asas
velhos desasados nos
peitoris das casas donde
já não saem senão para
ver passar o andor na
mirífica procissão do
senhor da boa-morte.

(haverá morte melhor
do que esta do senhor)

 

13.

 brônquios galhos
em cedro pulmão
a morte em flor:
a noite velha.

(“didascália deveria
ser nome de flor tal
como lírio ou estrelícia”)