Rex

I.

ás vezes depois de já estar sentado
na poltrona do ônibus observando a noite
incidir sobre os estacionamentos
de supermercados e cruzamentos
e prédios sem carcaça
penso em como seria se eu fosse
esse tal vigilante noturno
trancado num colégio que ainda se ergue
encravado em um município de olhos de palha.

talvez nada mudasse subitamente.
talvez continuássemos a ir à praia
sendo regados pelo sol nos domingos aquarelados
e depois iriamos de mobilete até um fast food
ainda molhados a toda velocidade
o vento nos beijando loucamente
cabelos salinos ainda grudados em sargaços
e chegando lá comeríamos um sanduiche cada um
com hambúrguer cheddar cebola e bacon
acompanhados de batatas fritas e suco de laranja
talvez depois você passasse mal do estômago
talvez fosse remar contra a cultura e os humores murchos
talvez quisesse conversar sobre o paradeiro de kilgore trout
mas eu já deveria estar longe
navegando contra a correnteza de automóveis
indo vigiar o grilos e morcegos
dentro da embarcação em construção.

II.

eu iria ter um cachorro comigo.
daria o nome para ele de rex:
o mesmo nome do meu primeiro cão
que morreu engasgado com um osso
cujo corpo nunca cheguei a ver inerte numa caixa de sapatos.
ele andaria comigo pelo pátio do colégio fantasma
seria pardo ou talvez negro feita a sombra de uma pedra
eu beberia café sem açúcar e ele água da torneira
afagaria suas orelhas enquanto admirava seu sono dimensional
arremessaria gravetos para ele ir atrás
ele correria com a boca aberta
a língua estirada para fora como um tapete vermelho
e pegaria o graveto
mas não me devolveria
porque nunca fui bom em adestrar coisas que saltam
então ele guardaria o graveto para si
talvez o roesse talvez o mijasse
talvez o enterrasse junto as crisântemos
que ainda não estariam ali
para o entregar a alguém que fosse o amor para ele.

penso isso durante todo o trajeto
desde o teu último abraço
até meu primeiro passo de volta ao meu bairro
eu usaria um uniforme igual ao do meu pai.
você iria as vezes me afagar no portão.
rex seria nosso terceiro filho.
as noites se moveriam comprimidas e sem recuo
talvez eu precisasse tomar remédios
comer feito gado respirar repleto de musgo
ser um poeta morno odiar meus cabelos
respirar repleto feito poeta odiar meu gado
comer meus cabelos ser um musgo morno
odiar meu poeta ser gado respirar
meus cabelos mornos comer repleto de musgo
ser meus cabelos comer feito poeta
odiar repleto de musgo respirar meu gado morno
talvez eu não precisasse tomar remédios
e quando o colégio estivesse de pé
funcionando sem a ajuda de aparelhos
as crianças estudando de branco e azul marinho
professores fumando cigarros amargos nos intervalos
zeladores merendeiras e baratas como glóbulos brancos
adolescentes fumando cigarros salgados nos intervalos
as luzes acesas os olhos em stand by
e eu finalmente carregando mais tempo livre
pra você
pro rex
pros poemas pros desenhos
e pra admirar minhas calças
desbotando gradualmente
junto a ferrugem da praia.

 

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