As Aventuras do Senhor Lourenço §4 (da maledicência)
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O Senhor Lourenço é professor de filosofia (o destino não seguiu os seus sonhos), ensina no secundário adolescentes entre os 15 e os 18 anos. Gosta e não gosta do que faz, à semelhança da sociedade, tem uma relação ambivalente com os mestres-escola, insignificantes e fundamentais, cultos e estúpidos, decentes e impróprios, dedicados e baldas.
As escolas não são lugares de amor incondicional à aprendizagem, talvez isso seja, aliás, irrelevante. Os alunos preocupam-se mais ou com a popularidade ou com as classificações (que estão longe de representar conhecimentos e competências significativas). Os professores, desbaratados por um estatuto social que não cessa de cair, minados afectivamente pelo envelhecimento geral da profissão (a alegria parece ser inversamente proporcional à idade), vivem entre lamentos sobre a ciática e outras maleitas de lar-de-terceira-idade e micronarrativas do quotidiano. Mas continuam a resistir às ordens puramente burocráticas que obrigariam a despender tempo e pensamento para cumprir procedimentos totalmente inúteis, aliás, é próprio da boa burocracia exigir o inútil, o irrisório, forma de domesticar os trabalhadores, em primeiro lugar, e a sociedade, em segundo (expandindo-se como a peste). Felizmente, um misto de lucidez e de preguiça vai resistindo ao “absurdo suave”.
[se se seguir à letra toda a legislação escolar, sei-o por mim, desliza-se mais rapidamente para a paralisação do sistema do que através de uma desbragada anarquia. Portanto, revolucionários de todo o mundo, já sabem por onde ir]
Os professores, dizia, são uns rezingões à espera da reforma, de viverem finalmente sem fazerem nada, colados às telenovelas e jogos de futebol, um ou outro livrinho simples. Neste caso, as excepções são mesmo excepções, que ou assentam num ego amplificado ou numa persona non grata feliz pela expulsão do círculo paradisíaco das conversas de chacha.
[em casos semelhantes, costumo citar Bernardo Soares/Vicente Guedes: “A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil.” Antes preferia: “apaixonar-nos genuinamente pelo bom, verdadeiro e belo”]
Lourenço vai pouco à sala de professores, arranjou lá alguns ódios de estimação (esta expressão é um centauro linguístico), combustível abundante, e no seu caso calhou-lhe a fava das rainhas da coscuvilhice, ainda por cima amigas de infância da Directora. São duas gajas que se suspeita terem pactuado com o Diabo para se manterem fúteis e maldosas (variação pífia do mito de Fausto). Ninguém sabe ao certo o que leccionam, parece que tratam da papelada dos cursos profissionais e acompanham os alunos em visitas de estudo (uma forma de entretenimento muito apreciada). Não falham um intervalo na sala de convívio, mas é sobretudo entre as 10 e as 14 horas que dominam incondicionalmente esse território. Percorrem-no traçando linhas oblíquas desencontradas mas que acabam por sobrepor-se, e muitas vezes, lidas semioticamente, desenham verdadeiras obras de arte de figuras contorcidas à la Francis Bacon. Enquanto deambulam, olham assertivamente para os dois lados e vão lançando invectivas contra o Governo, o Ministério da Educação e os colegas incautos que caíram nas suas más-graças.
– Já viste, o António agora tem a mania que é doutor, corrigir assim as colegas, deve querer alguma medalha!
– E o João – lança a segunda –, esse badameco que ainda no outro dia chegou aqui, armado em superior, nem ao jantar de Natal foi! (nada pode ser mais ofensivo do que faltar, sem uma desculpa bíblica, a este encontro meio teológico meio alcoólico).
Poucos as ouvem e entram na conversa. Não por despeito, mas porque estão noutro estrato desenvolvendo o seu próprio campo coscuvilheiro. Há-os distintos, começam sempre o ataque por “não é uma crítica, mas...”. Há-os parolos, acusam quem lhes faz frente de não deixarem o “país ir para a frente”. Há-os pindéricos, julgam-se guardiões da Idade de Ouro da Escola, do tempo em que só ia dar aulas quem era ungido por um alto representante de Deus e de Paulo Freire. Há-os patéticos, vencedores antecipados de todos os dissensos com alunos e pais. Há-os anódinos, sorriso semi-Colgate e distribuição generosa de bons-dias. Há-os pretensiosos, vêm em geral da Faculdade de Letras e trazem o bebé do Rei na barriga, mimetizam as velhas múmias catedráticas. Há-os super-pedagógicos, para quem tudo se fará com o jeitinho didáctico acertado, maluquinhos do “fora da caixa”, o que acaba sempre por criar outras caixas, bastante defeituosas, por sinal, devido às torções que sofrem para deslizarem do estabelecido e afirmarem alternativas psicadélicas.
E todos estão velhos, é isso que rasura qualquer esperança, estão velhos e rabugentos. Lourenço, apesar de tudo, é um meta-professor, e nesta relação incestuosa consigo mesmo mantém uma lucidez que o protege das caricaturas mais óbvias. Além disso, não se leva a sério (mesmo Proust terá dito a André Gide que era preciso rir desbragadamente da literatura, apesar da sua importância). À força de ler Nietzsche, arriscando até o original, desvaloriza tudo o que não seja póstumo. Mas às vezes está tão entediado que deseja que algo de excitante lhe aconteça ainda que seja terrível.
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