Imre Kertész morreu
/Parcelas da entrevista, e de pequenos comentários meus a partir dela, de Imre Kertész para a revista Philosophie Magazine e Alexandre Lacroix em 2013: “Imre Kertész: ‘L’écriture est un jeu mortel’” [a escrita é um jogo mortal]. Trago-a aqui como oração fúnebre e porque revela a importância que a filosofia teve para Kertész.
Kertész nasceu em Budapeste em 1929, foi deportado, com 14 anos, para Auschwitz e Buchenwald, depois da Guerra regressou a Budapeste, onde trabalhou num jornal, despedido pouco tempo depois (1951) pela máquina política, publica a sua opus magnum, Sem Destino, em 1975 (silenciado no seu país até 1989), Prémio Nobel da Literatura em 2002. Há várias traduções em português.
A sua vida roçou constantemente a linha da morte, e isso definiu tanto o que escreveu como o ter sido tradutor, por exemplo, de Camus, Nietzsche e Wittgenstein. A isto acrescente-se o peso enorme da censura, sobretudo depois dos russos esmagarem a insurreição húngara de 1956 (havia já uma ditadura comunista desde 1948), e a síndroma do sobrevivente, como em Primo Levi e tantos outros resgatados dos campos de concentração nazis. Assim se compreende que tenha dito, aquando da entrega do Prémio Nobel: “Há no meu percurso algo que dificilmente podemos pensar sem sermos tentados a acreditar numa ordem sobrenatural, uma providência, uma justiça metafísica, isto é, sem se iludir, e com isso entrar num impasse, destruir-se e perder o contacto profundo e doloroso com os milhões de seres que foram mortos, nunca conhecendo a misericórdia.”
Kertész ficou na Hungria depois do “manto de chumbo” que abafou o desejo de liberdade de parte da sociedade, diz que permaneceu para escrever um romance, do qual ainda não havia sequer uma linha (virá a ser Sem Destino). Para sobreviver, depois da esposa ter sido também excluída da economia burocrática oficial, estando inclusive presa durante algum tempo, escreveu peças de teatro para companhias de rua, actores e encenadores anti-regime, e fez digressões durante metade do ano. Na outra metade lia filosofia, os clássicos, de Platão aos modernos. Questão de aprender a reflectir, coisa difícil, já que não basta pensar, diz, é também necessário encontrar um objecto sobre o que pensar, os clássicos de filosofia foram o objecto de Kertész, permitindo-lhe superar a condição particular da humanidade, visto que: “a reflexão é uma arte que ultrapassa o homem.” Ainda que, a partir do dissenso entre Wagner e Nietzsche[1], Kertész afirme que “Os artistas jogam com as ideias. Os filósofos são incapazes de ter esta distância e este humor.” (Nietzsche foi, neste caso, o mal humorado e o híper-susceptível). Apesar da seriedade e susceptibilidade, os filósofos permitem clarificar criticamente o que parece evidente, por exemplo Wittgenstein mostrou-lhe que não há uma experiência privada da linguagem, ela pertence a uma comunidade de sentido. Por isso, quando dizemos “eu” dizemos igualmente “ele”.
Uma das principais influências filosóficas e literárias foi Albert Camus (na literatura, também Thomas Mann), que descobriu, lendo o Estrangeiro, aos 27 anos. Até aí ainda não tinha cruzado um escritor genial, a leitura do livro deixou-o em choque, um choque que “durou quatro ou cinco anos.” A marca fundamental veio da ideia de liberdade, Kertézs diz que graças ao Estrangeiro compreendeu que a verdadeira literatura faz emergir um violento sentimento de liberdade. Em geral, destaca a admiração que votou à insolência camusiana: “Para mim ele representava a figura do jovem homem que descobre tudo, vê tudo, que ousa dizer tudo com audácia e maldade. Vede como Camus, que vinha da Argélia e não tinha ainda 30 anos, ousou apropriar-se das grandes noções da filosofia – o absurdo, o homicídio, a liberdade... – sem respeito, sem precauções, sem medo. Esta energia, invejei-a. Quis mesmo roubá-la.”
Relação entre filosofia e literatura: “vejo a filosofia como uma procura de verdade, o que supõe um certo espírito de seriedade, enquanto que na literatura se trata de outra coisa. A escrita é um jogo mortal. Quando nos comprometemos com a escrita de um romance, é preciso encontrar uma linguagem. Esta preocupação de fazer nascer uma linguagem singular é aos olhos do escritor de uma gravidade mortal, torna-se uma questão vital. O meu primeiro romance, Sem Destino, não poderia ter sido escrito noutra linguagem.”
Porque é Sem Destino um livro de ficção e não um testemunho, o seu testemunho da passagem pelos campos de concentração nazis? Para Kertész “A arte do romance consiste em encontrar uma unidade entre três dimensões-chave: a linguagem, o tempo e a acção. Procurei encontrar uma linguagem para Sem Destino que me permita, como dizer, penetrar nalgum sítio. Sim, é isto, trata-se de um livro que não reivindica nada, que não se preocupa com a história porque se recusa a olhar os factos a partir de fora. O narrador está em imersão, enquanto que o testemunho pressupõe sempre uma espécie de distanciamento.” Mesmo assim, nesselivro de ficção confrontou-se com o seu passado, com o rapaz de 14 que chega a Auschwitz e mente na idade para poder ir trabalhar (algo que, sem o saber, o salvou da morte imediata). Uma mentira e um certo orgulho em pertencer ao mundo dos adultos, forma de colaboração passiva. “Confrontei-me sem cessar ao longo do romance com partes fechadas da minha própria história, partes que tive de reabrir. Não se trata de realidade histórica, mas de autenticidade vivida.”
Finalmente, e contando que em 2013 a doença de Parkinson ia adiantada, à pergunta sobre se foi a doença que o fez parar de escrever, responde: “Sofro muito, é verdade, mas tenho uma razão precisa para suportar estes sofrimentos, de não acabar com eles rapidamente. Pensai nos suicídios de Primo Levi, de Tadeusz Borowski ou de Jean Améry, a todos os sobreviventes dos campo que se suicidaram. Eu não quero juntar o meu nome a esta lista. Não quero que se diga que eu próprio executei a sentença. É por isso que aguentarei até ao final.”
É isso mesmo, por vezes a virtude está em aguentar, aguentar apesar de tudo.
[1] Sobre quem tem uma intuição justa, ao dizer que a expressão “Deus morreu” não revela uma intenção estritamente teológica, mas o fim da cultura humanista.