Futebol e Literatura

Já não estamos na época das Belas Artes, onde se definia com suposta clareza o que era e o que não era Arte. Também abandonamos a expressão, que aliás surgiu como arma crítica, de “baixa e alta culturas”. Mas ainda se mantém, pronta até para um maior protagonismo, a de “culturas popular e erudita”. Esta polarização fraca separa, por exemplo, o futebol (“cultura popular”, “entretenimento”, “indústria”...) de literatura (prestigiosa em si mesma, isenta, por isso, de adjectivação, a não ser quando nos referimos à falsa literatura, aos discursos que se dão “ares de literatura”).

No entanto, talvez se escreva mais sobre futebol do que sobre grandes temas literários (paixão, vingança, traição, guerra, altruísmo, heroísmo, decadência, niilismo, beleza, sacrifício... ou qualquer objecto no Nouveau Roman). E por isso, de vez em quando, imagino uma realidade onde, a par do “Sonho com um mundo onde se morresse por uma vírgula.”[1]  (Émile Cioran, Syllogismes de l’amertume), quem escreve sobre futebol o fizesse com a técnica, o entusiasmo lento e a criatividade dos bons romancistas. Algo que por vezes parece actualizar-se, por exemplo neste artigo para o El Pais de José Sámano sobre o jogo entre o Atlético de Madrid e o Barcelona de ontem para a Champions League (2-0).

Provas:

“Gente que transcende os títulos” (caberia perfeitamente num herói de guerra de Tolstói ou num altruísta involuntário de Lobo Antunes).

“O ‘semionismo’ [a partir do nome do treinador do Atlético] converteu a paróquia de Manzanares num acto de fé para uns diocesanos que ressuscitaram dos infernos e podem acreditar no que querem acreditar.” (o óbvio Dante mas misturado com Nietzsche e boa literatura de auto-ajuda, começando por Emerson).

“à falta de jogo que os exaltasse, ou da inspiração de alguma estrela, puxem da casta, mas o heroísmo não é para eles [em relação ao Barcelona].” (Proust, Céline – por razões diferentes –, Roth, Musil...)

“O Atlético quis correr e o Barça, até que se viu perto do abismo, só caminhar.” (Nietzsche e Camus, talvez um pouco de Goethe)

“Os avançados eram tão invisíveis como os três centro-campistas [Barcelona], todos aparafusados por este Atlético de paladinos, contra o qual não há outra solução além de puxar do fórceps.” (um bom final para um livro de Agatha Christie)

“um remate de cátedra” (metáfora multiusos)

“Com o despejo da Europa à vista, Messi e os seus, já com fogo nas botas e no coração, puxaram do orgulho e lançaram-se em turbilhão sobre Oblak [guarda-redes do Atlético].” (adequado a qualquer projecto lírico neo-romântico ou adorno sentido para um best-seller pretensioso)

 

[1] “Je rêve d’un monde où l’on mourrait pour une virgule.”