As Aventuras do Senhor Lourenço (§22 Lourenço no Correio da Manhã)
/(cont.)
[não tenham pena do que vai acontecer ao Lourenço, o trágico, ainda que banal, continua a ser um poderoso antídoto contra as formas de anestesias gerais, o universal bocejo de indiferença em que vivemos]
O trágico enfeitiça, mesmo os sacrificados. Creio que Édipo não trocaria a sua biografia por uma entediante vidinha de heleno bem comportado.
[já o escritor desta história, fiel aos factos, revisitáveis na memória do mundo guardada no Google, tem um receio de morte de não passar de pequeno escritor de novelas, enfeitadas com falsas intensidades e peripécias de cordel, adornos de feira, preenchidas por personagens que dificilmente cumprem o plano de parecerem vivas e autónomas, peças fraquinhas de um relógio acebolado]
Referi algumas vezes que Lourenço tinha qualidades, sem que a avaliação fosse influenciada pela nossa amizade. Objectivamente, ele possuía bons traços de personalidade. Destaco a recusa em lamentar-se, evitando assim “ancilosar-se no seu modo de ser.”
Regressemos à história. Numa manhã de finais de Maio, à ida para a escola, Lourenço passa os olhos pelo Correio da Manhã exposto no quiosque da estação de metro, lendo: “LOURENÇO MENTIU!” Primeiro, pensou num qualquer jogador de futebol ou numa estrela de reality show. Durante umas centenas de metros foi tecendo um puzzle simples com esse título do tablóide mais bem sucedido de Portugal. Chegou mesmo a pensar numa leitura nietzschiana, a contra-pêlo, da indignação (no mundo da comunicação social, indignar continua a ser lucrativo). Só quando se sentou numa carruagem de metro meio vazia explodiu no seu cérebro a possibilidade do “Lourenço” ser ele. O “posso ser eu” encheu o seu corpo de adrenalina, tanta que o coração ameaçou parar antes de se pôr ao trabalho, bombeando um fluxo inabitual de sangue para repor o equilíbrio vital, mas fê-lo atabalhoadamente, excedendo-se bastante, obrigando uma grande parte do sangue a viajar até às extremidades do sistema circulatório, junto à pele, para se arrefecer. Pouca sorte, ficou vermelho como um tomate maduro sem ganhos fisiológicos, o dia quente e húmido, prova da primeira onde de calor do ano, não refez a harmonia térmica.
Na próxima estação, Lourenço saltou do lugar e esticou o passo para chegar o mais depressa possível a um quiosque de jornais. Ia em contra-corrente, como quase sempre na sua vida, chocando e pedindo desculpas. Sempre gentil, apesar da ansiedade. 5 minutos depois comprou um Correio da Manhã, abriu-o e foi à procura da notícia. Estava logo na página 3, uma fotografia enorme de si e um título, “Fomos bem enganados!”, definiam a trama geral da folha, preenchida por texto, muito texto para um tablóide.
Segundo o jornal de faca e alguidar, especializado em desgraças sexuais, vitais e políticas, mistura de estilo vertiginoso e libidinoso, Lourenço atirou-se sobre o terrorista porque tropeçou enquanto fugia do local em pânico. Aliás, segundo uma “fonte idónea”, pertencente ao grupo do Lourenço durante a caminhada pelas linhas do metro, o suposto herói “tremia como varas verdes”, foi necessário animá-lo constantemente. Depois, quando chegaram à estação, ele foi o primeiro a querer fugir dali, mas a aflição tolheu-lhe os movimentos e acabou por se atrasar. Apesar disso, continuava a fonte, lá conseguiu, e uma vez na plataforma foi o “ver se te avias”. Felizmente, “tropeçou em alguém ou em si mesmo e foi aterrar, para bem de todos, em cima do bombista.”
Em hiperventilação, Lourenço procurou no passado factos que desmentissem aquele, ou aquela, merdas. Fê-lo uma e outra vez, mudando de perspectiva e esforçando-se por invocar detalhes redentores. Mas não conseguiu encontrar provas irrefutáveis contra a fonte. Nem as imagens do circuito vídeo interno, que só captaram o mergulho final sobre o bombista, seriam de grande ajuda. Talvez o jornal tivesse razão, como poderia ele, em consciência e liberdade, ser um herói; ele que hesitava por tudo e por nada, ele que nunca teve coragem além da necessária para fazer uns exames académicos, apanhar transportes públicos e ir sozinho à feira do livro; ele que aliava niilismo e conforto; ele que enquanto jogou futebol quis sempre ir à baliza?