Anatomias
/Demora muito tempo a encontrar o corpo de um poema.
O difícil é a curva perfeita da anca,
ali onde as palavras se tornam repletas de sons admiráveis
e o destino se aproxima rapidamente
por entre pausas, respirações e uma vírgula final,
ao interior de tudo.
Eu era da sua família.
Partilhávamos apelido, cor de cabelo e gosto por orangina.
Acompanhámos, sempre, o florir dos jacarandás
como se isso significasse vida nova.
Demos as mãos muitas vezes na escola.
Vi-o crescer, lentamente, como eu
- se bem que eu dei um pulo aos dez anos -
e a continuar a gostar de ver desportos motorizados ao domingo de manhã.
Tão parecidos, em muita coisa,
até ao momento em que cada um ganhou identidade.
Ele segue o rumo das palavras que lhe vou dando,
eu esqueço-me tantas vezes de o retomar.
Cada um por si, até ao momento
do reencontro.
- Estavas por aí nessa gaveta e agora precisas de ser terminado.
A curva perfeita ainda está por desenhar
e os sons, sons, sílabas sonoras, sentidas, salientes,
os sons estão quase lá.
Bato na mesa e deixo inundar a sala
como a da vizinha do outro lado da rua depois da chegada dos bombeiros
para resolver um pequeno incêndio de cozinha.
Inundado de palavras
basta pescá-las, uma a uma,
e colocá-las no cesto certo.
Depois,
já não partilhamos os mesmos gostos, nem apelidos, nem destino.
És outro. Livre.