As Aventuras do Senhor Lourenço III Acto (§21 banalidade do trágico)
/(cont.)
[às vezes escrevo sem pensar, deixo que a escrita entre em mim e desenhe a história à sua maneira. Outras vezes quero, qual criança mal mimada, dominar todo o processo discursivo, desviando-me para isso das frases feitas, já que só um inventor pode ser legislador]
Lourenço separou-se da Manuela, perdendo as comodidades de menino rico (os ricos são “meninos” até muito tarde), sobretudo a de viver num 5 assoalhadas na rua Garrett ao Chiado, vista para o Tejo e para resmas de turistas que agora nos visitam à procura de sol e, em vão, do pitoresco (o tuga quase desapareceu de Lisboa). Foi viver num quarto minúsculo e rançoso na rua do Salitre, alugado “por especial favor”. Na mesma casa moravam a senhoria (80 anos e queixumes sobre os tempos modernos e a “juventude que já não respeita ninguém, nem Deus”) e mais três estudantes de Belas Artes, cheios de namoradas e sonhos de grandeza artística, sobretudo depois de fumarem canabinóides (os partidos políticos do optimismo deviam distribuir este neo-soma a toda a população), talvez não fosse necessário, sabemos bem que os artistas não sublimam. Na mudança despachou a maior parte dos livros para a casa dos pais em Odemira, contente por ter agora apenas cerca de vinte “obras essenciais” que podia ler e reler, colocando-se em modo penepoliano.
[quando se envelhece troca-se a horizontalidade pela verticalidade, a amplitude pela concentração, escava-se um buraco em vez de se lavrar uma terra. Prefere-se a imersão a prumo aos deslocamentos conquistadores, é-se menos territorial e mais espiritual]
Estranhamente, este regresso a uma vidinha quase miserável preparou Lourenço para a tragédia. Não sobre-intensa, repleta de hybris, com deuses a espumar vingança em cada frase. Uma pequena tragédia, com alguma tensão dialéctica, mas sem os antagonismos delirantes entre o humano e o divino; a secularização manteve apenas alguns equívocos do quotidiano e os gritos furiosos e incontroláveis das guerras. Se as guerras são totalmente colonizadas pelo absurdo, então perdem o sentido do trágico. Restam os acasos desgraçados para o trágico, o mini-trágico. Não se suprimindo, porém, o sofrimento sem porquê, isento de redenção para os actores, agora representado nos Zés da Esquina a quem bloquearam o carro porque não respeitaram o estacionamento pago; ou nos Antónios de Lisboa que nunca arranjaram um emprego decente, apesar dos doutoramentos em velhas e veneradas humanidades, porque, meios autistas e com famílias modestas, ninguém os recomendou e o funcionalismo público privilegiou, por estratégia política, as gerações antes das suas. Noutros termos, já não há nem Édipos nem Antígonas capazes de desafiar parcelas fundamentais da Ordem. Ou, depois da enésima morte de Deus, já não há sequer Ordem para desafiar.
Se Hannah Arendt cunhou o termo “banalidade do mal”, os tempos hiper-modernos encarregaram-se de inscrever na história das palavras e ideias o de “banalidade do trágico”. Talvez, mas fico-me pela suspeita, porque vivamos a fazer zapping entre os problemas vitais que envolvem, num abraço de urso, o mundo. E fazemo-lo porque as soluções obrigariam a substituir-se o estilo de vida Ocidental pelo regresso a uma austeridade medieval, e nós preferimos o conforto tecnológico e dietético. Nova versão do “prato de lentilhas”.
Será este trágico, “o melhor dos trágicos possíveis”, como costuma dizer um amigo meu, que Lourenço voltará a educar-se para um mundo que, como queria Schopenhauer, só pode ser de sofrimento (aqui e ali redimido pela contemplação estética, sobretudo musical).