Animais políticos numa sexta-feira à tarde: Algumas notas

1.    Há uns meses que ando a ler o jornal sem pagar. Ao fim do dia o rapaz na estação de comboio simplesmente não quer saber. Depois das quatro da tarde os jornais são apenas mais uma das tarefas que o esperam antes de fechar o estabelecimento, que, como todos os cafés de Inglaterra, fecha cedo, deixando a estação aos cães, aos últimos passageiros do dia e à indolência de carruagens que se alongam por estações cada vez mais desertas. É na fantasmagoria das estações de comboio deste país que melhor se entende o amor que une Inglaterra a um dos géneros literários nacionais, os romances policiais.

2.     O verão em Inglaterra pode ser mais ou menos insuportável, mas sobretudo mais ou menos inexistente. A meteorologia entra no mais completo descontrolo, como um barómetro avariado. A ilha simplesmente não foi desenhada para suportar o calor, são precisos vários dias de chuva para que se produza um dia quente, a que imediatamente sucede, claro, mais água. Foi Karl Ove Knausgaard quem escreveu, no primeiro volume de A Minha Luta, que os humores humanos são como a meteorologia, estão lá sempre, não é possível livrarmo-nos deles, a que se devia acrescentar que há uma ligação indelével entre humor e meteorologia, que quanto mais solar ou mais cinzento o tempo, assim de vez em quando o temperamento.  

3.     O humor é a atmosfera da empatia. Actos básicos de gentileza serão repartidos pelos dias segundo as flutuações desta moeda. Virtude (palavra que talvez só exista em sentido moral) é controlar o humor. Ausência de controlo resulta ou em injustiça ou em poesia ao género da do neo-romantismo, ao gosto de um Feliciano Castilho ou Bulhão Pato. Sabiam-no os estóicos e os epicuristas. Dois sistemas filosóficos, de resto, para os quais nunca tive muita paciência, sobretudo por me parecer que estão desenhados para contradizer os impulsos vitais mais básicos, que alguma coisa neles traduz avant la lettre a lógica de pecado e punição do catolicismo, e mesmo que isto não seja certo, T.S. Eliot tinha razão quando escreveu que o passado é constantemente alterado pelo presente, a nossa leitura dele pelo menos. Assim a minha embirração com os estóicos, olhando para eles depois de Cristo. Manter o nosso humor sobre controlo, sim, mas até isso com moderação.

4.     O moderado rapaz da banca do jornal, no entanto, tem um trabalho difícil e de um modo geral pouco apreciado. Por exemplo, não é raro trabalhar turnos invulgarmente longos, desde as seis da manhã até às seis tarde. Não é fácil aturar os transeuntes desta estação, dos adolescentes de uniforme aos ocasionais skinheads da English Defense League, consumidores de cerveja às 7 da manhã. O rapaz da banca de jornais, no entanto, parecendo que não, a sua vai tornar-se para mim uma dessas presenças silenciosas com quem se troca poucas palavras de cada vez, e que no entanto se sabe que, quando olharmos para trás, essa mesma presença há-de voltar como uma espécie de símbolo de toda uma época da nossa vida. Afinal, ele tem estado aqui desde o primeiro dia.

5.     O rapaz da banca do jornal reparte pequenos actos de gentileza pelos dias, de que deixar os passageiros ler os jornais que sobram ao fim do dia talvez seja apenas uma manifestação ínfima. A rotina das cidades condensa isto: há estranhos que se nos vão tornando cada vez mais familiares. Quando um de nós falhar este breve encontro diário, o outro notará essa ausência. O que permanecer há-de atentar na instabilidade introduzida pela ausência do outro.

6.     O futuro são as pessoas que comparecem às suas rotinas diárias. Nem tudo numa rotina é anestesia da repetição. Tudo o que se repete pode deixar-nos em guarda para a repetição excessiva. A banalidade de alguns gestos prepara o dia seguinte, traz o capítulo seguinte. O tecido das sociedades em que vivemos, o nosso conhecimento dos outros, assentam no reconhecimento prévio desse guião. A maior parte dos trabalhos que nos rodeiam são mais ou menos invisíveis.

7.     Parte da minha rotina implica esta estação de comboio e, assim, encarar mais ou menos diariamente com as primeiras páginas dos tabloids britânicos, o que garante que raramente me falta uma dose diária de indignação. Todos os jornais na Grã-Bretanha, do The Guardian ao Daily Mirror são abertamente facciosos.

8.     Talvez nada tenha clarificado este ponto para lá de qualquer dúvida como o período que antecedeu o referendo que ditou a vitória do Leave. As intenções de voto podiam ser facilmente previstas pelo jornal debaixo do braço. Boa parte do que se confunde ou não se confunde com jornalismo neste país serviu para ditar que esta votação não foi produto de uma reflexão sobre factos, mas sobre emoções, com a raiva e o descontentamento a explicar que se pudessem encontrar nas caixas de comentários de jornais pérolas como: “I’m voting leave: Muslims out!” Ou o meu prazer culpado de ler as crónicas da Marina Hyde no The Guardian, com a certeza de que aquela que esta colunista dedica ao último dia de Cameron no Parlamento foi escrita para mim, nemesis por outra manhã numa página de Orwell.

9.     Não que não haja margens para a surpresa, como encarar com a primeira página do Daily Mirror no dia anterior ao referendo, e ver a versão mais populista de um slogan a favor do Remain que nenhum partido de esquerda neste país se atreveu a cifrar: for your jobs, your NHS, for your children. Quoque tu, Daily Mirror?

10.  Nada me deixou entender tão amplamente as reservas que Platão mantém em relação aos poetas na República como a actuação dos políticos pro-Brexit nesta campanha, no sentido em que bons autores de ficção, poetas do calibre de um Farage e de um Boris Johnson, serão sempre bons a manipular as emoções dos cidadãos. É o grande ponto fraco da democracia. Uma explicação ética dos factos, segundo Aristóteles, bastaria para compensar esta limitação. Esta campanha demonstrou que basta as falsas opiniões circularem livremente, sem um contraditório que as prenda aos factos, para um milénio de fé na capacidade dos humanos para o bem ruir como um castelo de cartas. Penso que não deve haver teoria moral que sobreviva a um descontentamento podre em que um populista possa tocar com um dedo. Os mais pessimistas entretém comparações com a Europa dos anos 30.  

11.  Há um elo entre a banalização de tudo e a hegemonia da opinião sem factos que explica a ascensão (e esperamos que a queda) de um Donald Trump, de uma Marine Le Pen, de um Boris Johnson ou de um Nigel Farage. A opinião e o oportunismo dependem ambas de curtos intervalos de tempo e servem para alimentar o barulho que para os mais manipuláveis (ou os mais dispostos a serem manipulados) limita todo e qualquer espaço que pudesse ser dedicado a uma séria reflexão. A falta de tempo que nos instrumentaliza em casa e no trabalho é também parte deste problema. Quanto menos tempo mais raiva e menos reflexão, mais expostos nos tornamos ao populismo e ao oportunismo.

12.  É possível entender o descontentamento que a União Europeia provoca e não é algo que vem de hoje. Pode-se invocar a crise dos refugiados, ou recuando um pouco mais, a fraca resposta à ocupação da Crimeia, num país que afinal se manifestou pro-UE, ou a austeridade, ou muito antes disso, invocar lugares agora mais distantes, algures na Sérvia e na Jugoslávia. Surpreendentemente, nenhum destes argumentos ditou o resultado desta campanha, na qual de resto não se conduziu uma reflexão atenta acerca dos muitos problemas da UE hoje, uma que explicasse para lá de qualquer dúvida porque é que o caminho social e político aberto pelo Brexit seria tão mais preferível (sabemos agora que se ignora mais ou menos totalmente o que é este caminho ao certo). Onde as sondagens se viraram indecisamente para o não foi quando a emigração se tornou uma questão no referendo e, ligado a esta, o falso argumento da soberania. Mas a Inglaterra mantém-se um país soberano, com um parlamento com o poder de chumbar ou aprovar leis, e, até ver, o poder de controlar a sua emigração era mais forte enquanto estado-membro. É bastante improvável que a Inglaterra mantenha acesso ao mercado livre da União Europeia sem aceitar a livre circulação de pessoas. O último encontro entre May e Hollande parece confirmar esta ideia. Aí a grande mentira do Leave. Quando ouvimos Marine Le Pen em França descrever isto como uma vitória da democracia (uma vitória de 52% aliena apenas 48% da população de um país), sabemos que o populismo bateu tudo o resto aos pontos. 

13.  A banalização de tudo, que está ligada a esse furor da opinião que não questiona os factos, tem outro shortcoming, talvez mais preocupante do que os enumerados acima: é que arrasta a nossa empatia pela lama, torna-nos menos dispostos à gentileza sem a qual o mundo seguirá sendo a selva onde os fascistas de hoje, alguém como Trump, Le Pen, ou Farage, serão os últimos guardas da fronteira para lá da qual jaz tudo o que nos é alheio e que por isso deve ser exterminado ou deixado para morrer nos muros. É o movimento de nos virarmos para dentro, de irmos sendo cada vez menos cosmopolitas, que deixa adivinhar o fantasma do nacionalismo a pairar sobre a bandeira do patriotismo. Os patriotas que orquestraram o Brexit, com falsas promessas de mais dinheiro para o NHS, de resto, reconheceram todos a necessidade de correr de volta ao lar, abandonando a cena apressadamente  

14.  Na sexta-feira, 15 de Julho, encaminhando-me para a banca de jornais, paro e atento na capa de um dos tabloids. É tão conspícuo porque a imagem ocupa a capa toda. A princípio parece ser a estreia do filme da semana, um qualquer melodrama hollywoodesco, mas é uma fotografia tirada no passeio em Nice, na noite anterior, que atinge os transeuntes sem aviso. Vê-se um jovem casal estirado no pavimento, só um deles vivo. Uma imagem tirada de um pesadelo atirada para a banalidade sórdida de fazer vender tantos jornais quanto possível.

15.  Os últimos passageiros abrandam por instantes e seguem na indolência vagamente contente de sexta-feira à tarde para os vagões que os levarão às suas casas. Levinas escreveu, algures em Ética e Infinito: Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz , ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto.

 

Oxford, 19 de Julho de 2016