As Aventuras do Senhor Lourenço (§28 nas nuvens)

Alfred Stieglitz, 1925

(cont.)

A inspectora considerava-se uma nostálgica, vivia a utopia e a esperança ao contrário. Como o passado mítico remete sempre para uma ordem harmoniosa, tendia, por vingança contra o presente, a castigar severamente os incumpridores da educação, professores falhados, indolentes, maltrapilhos, estúpidos, no máximo estultos... Formavam uma galaria de informes que deviam ser expulsos do ensino. Frutos podres da decadência actual, sem valores fortes e precisos. Por isso, apesar da cordialidade, aprendida no convento mais do que no mundo secular, com que tratou Lourenço, soube desde o início que lhe daria um castigo pesado. Tanto mais que ele tivera todos os deuses do seu lado para formar uma referência ética na classe dos professores, banir os maus olhados e o desdém com que metade da população vê, impulsivamente, aqueles que ensinam e, sobretudo, avaliam, às vezes arbitrariamente é verdade, gerações de neófitos sem vocação para anos de aplicação monótona a troco, muitas vezes, de um emprego mal pago e com pouco sentido. Lourenço comentou comigo logo no início que a inspectora tinha uma vontade grande de parar o tempo, parecia-lhe ver nela a insegurança dos que não sabem envelhecer, dos que ao olhar para diante antecipam apenas rugas, sofrimento e morte. Tanto mais que uma pele de Branca de Neve indicava que veria no bronzeado mais uma futilidade da nossa época. E como se sabe, bronzear é um dos principais passatempos sérios dos portugueses. Era, portanto, contra o Portugal presente que a inspectora agia. E Lourenço fora uma amostra do país, com a sua falta de rigor e coerência assustadoras na narrativa de heroísmo que, voluntária ou involuntariamente, constituiu.

– Dois meses suspenso sem ordenado! Dois meses? Injusto, totalmente injusto, arbitrário, infundado. – Lourenço continuou a desfiar acelerada e ininterruptamente um conjunto de asneiras que não pertenciam ao seu vocabulário. Pergunto-me onde terá ele aprendido esse jargão de taberna, e por que razão usá-lo agora. Nada havia a fazer, e não me pareceu útil, disse-lhe mais tarde, destilar toda a sua frustração ao pé da Directora, que devia estar mais satisfeita do que um leão depois de comer a presa.

Tudo em vão. Foi para casa, na verdade um quarto arrendado numa casa velha da Duque de Loulé, escadas sem luz, soalho com buracos, teto com várias marcas de inundações, e uma senhoria que “queria companhia” enquanto via a novela da noite. Lourenço feito refém das circunstâncias que ajudou a criar. Daí que uma energia negativa ganhava cada vez mais o seu ser. Fui lá um dia com o Joaquim e saímos deprimidos. Nós que compreendemos muito bem o niilismo, assustamo-nos com o poço sem fundo onde Lourenço tinha caído.

[fico agora na posição de narrador omnisciente, mas compreendo que duvidem do que vou dizer]

Por seu turno, como quase sempre depois de castigar, a inspectora sentia-se harmoniosa, sensual, quase bela. Mas desta vez havia uma pequena insegurança que a consumia. Continuava a amar antes de tudo as nuvens de Stieglitz e os céus de Turner, era lá em Cima que estava a sua ambição, agora sem a presença de deuses parecidos connosco. Um amor sem condições, como, por curtíssimos períodos, tinha tido por Deus, não o do Universo desencarnado, antes pelo seu filho, pregado na cruz, abdominais exemplares e a beleza facial triste, apropriada à dor sobre-humana. O belo símbolo do bem. Apesar desta espiritualidade, permanecia nela o prazer eléctrico que vinha do poder que tinha por ser inspectora, sabia-lhe bem infligir um certo medo. Mas o processo de Lourenço tinha mudado qualquer coisa nela, às vezes parecia ver parcelas da sua figura desenhadas nas nuvens. Nada de muito claro, pequenos indícios que provocavam micro-inquietações. Perguntava-se, talvez pela primeira vez, se teria sido justa, se aquele colega, desfeito pela incapacidade de corresponder às exigências do heroísmo, conseguiria aguentar mais esta desfeita. Além do mais, sabia que tinha dado um enorme prazer à parvinha da Directora, cheia de si dentro da maior das vacuidades.

Decidiu, por isso, ir a casa de Lourenço.