Hostilidade

Sentia que o tempo lhe era hostil. Ressentia-se diante da soberba da sua fugacidade e tomava-a como um excesso de libertinagem de Cronos, mesquinho e avaro.

Repentinamente, as portas abriam-se e o equilíbrio do silêncio vazava. Cerceava-lhe o espaço, o tempo, e talvez a existência, mirrando, frágil, a cada dia. E, numa desenvoltura de vapor, as palavras iam-se acumulando: rostos, descrições, tumultuosas e inquietas, fios narrativos desencontrados, iniciados e já em fuga, sonoros, uma meia oração esvoaçando a cada agressão do real. Seria, porventura, o escrúpulo perante a túrbida dimensão fabular aos seus olhos descoberta, o eterno temor da perdição e consequente irrazoabilidade do regresso. 

Volitava por entre as turbas sentindo-lhe o peso dos olhos e, simultaneamente, desencontrava-se e despersonalizava-se, desempossando-os também do concretismo, ouvia-os vozear e, todavia, era numa voz paralela onde a significância tomaria forma, cingia-se a uma sala e era outra. Todos tão compenetrados na vivência amarga de um dia comum, de um dia solarengo, quando por dentro lhe chovia do alto, como uma bênção. E por isso, não percebiam o meio sorriso, o balbucio entrecortado das palavras, a acidez das respostas.

O ideal seria, talvez, deixar-se assim sonolenta, preenchida, embora autorizasse, numa lucidez que lhe sabia na boca à amargura do ferro, que a precisão da hora e a exigência do quotidiano a alagassem de nadas, e acordava queixosa, entregando-se ao gume, antecipando mais um dia perdido. Deitava-se na angústia da incompletude e derreava-se perante a culpa de preferir a sordícia das letras à inocência e pureza da cria. E afagava-lhe o cabelo, como se o afago lhe ofertasse todo o amor e nada lhe vedasse. Mas não bastava, que eles comem e andam e a mãe é fiel sacerdotisa desses fins.

E, hipócrita, o dia continuava, os motores aceleravam sobre a água luzidia que caíra do céu e ninguém vira realmente, e tudo sobrava, menos o tempo. Fosse palpável, e talvez o fosse realmente, seria animal fero e veloz, nunca em sufoco, simplesmente plácido, imperturbável, num carrossel circular infinito.

Na desinquietação onde vivia remetida pelo tempo, ia contando os dias sobejantes, cuidando que morria a cada badalada, e a obra na imperfeição do começo. Todos se faziam mais velhos, mais inteiros e ela à míngua, como um rabelo à deriva com fome de mar, angustiado por se saber embarcação de rio. Cada voo de ave era um verso, cada folha verde uma metáfora, mas as palavras fugidias escoavam, escoavam e restava o espanto. Podia bastar, ia-lhe bastando, segurando o fio da vida, e, irrazoavelmente, invejava a ignóbil ignorância, o desconhecimento libertário. Quanto mais sabia, menos desejaria saber, recolhendo-se sob o seio asseado e seguro da insipiência: quem dera ser Eva antes da maçã, bicho brutal e animalesco, feliz à hora da nascença do sol e da presença de Deus.

Os dias cresciam magros, desoladores, o outono caindo. E as chuvas confundiam-na, que tudo era aquoso, refletor, talvez não pudesse ainda largar o corvo. Assumia-se a negritude, as meias horas vazando cínicas, e a presença ausentada de si, a comparência tremeluzente de outrem, talvez um espectro, faziam-na desanimar, as pedras já pesando no bolso, o rio fluindo. Sentia agruras que não eram suas. Ou talvez fossem. Pressentia frases, orações inacabadas, e acatava temores e um certo histerismo face a fobias. Talvez tenha um encosto, dizia alto para si quando ninguém estava, o que era comum. Um encosto de quem nunca soube combater-se. Um encosto de alguém esfaimado e simultaneamente farto. Sugava-lhe a vida de forma intensa e carnal, o mais ínfimo movimento a trazia cansada, a voz arrastada, a cabeça baixa, espiando o ruído mínimo, a gargalhada altiva em eco já, a sombra deixando o espelho, como quando olhamos para trás.

Um encosto sentindo, naquele corpo, a similitude atroz da sua vida. A tontura sonora do medo, a angústia incandescente perante a não articulação da frase, de esta não culminar num todo literato, de tudo ser, afinal, como um dia que nasce e morre sem efeito. E, desse modo, comprazido, o encosto regressava a casa.

Existem, certamente, formas diversas de lidar com a imperfeição, umas mais artificiosas, outras mais íntimas, consequentes dos atos umas, de uma ingénua e absurda aceitação do inconsciente face às curvas do caminho outras. A mais vigorosa é a da autossabotagem, a da falha escarninha, resignada que está a consciência, vendo claramente que a dualidade interior duela e ri escandalosamente da imperfeição, da sua realidade óssea, e impõe metas crescentes e gradualmente inatingíveis, de modo a que o alcance de ontem seja a deformidade de amanhã.