As Aventuras do Senhor Lourenço (§25 onirismo)

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Os sonhos são a coisa mais pessoal que há, um exclusivo do sonhador. Apesar de Freud, da sua analítica científica, que se preocupou mais, é importante dizê-lo, com o incesto do que com o abandono do Édipo bebé, como se o Ocidente tivesse há muito elaborado uma escala de valores com pouco sentido (o bem e o mal não se jogam na lógica). E Lourenço sonhava abundantemente, tinha sonhos geopolíticos onde invertia as utopias, talvez porque um dia leu Theodor Adorno e percebeu que a história era destrutiva, tal como os homens que produzia, sendo a morte pelo menos tão normal como a vida. Daí sonhar recorrentemente com D. Afonso Henriques, não o herói que todos queremos entronizar, mitificando-o, mas um nobre irascível e arrivista. Com a crueldade do seu tempo totalmente activa e uma veia manipuladora que juntava e separava, consoante as conveniências, os homens-guerra que queria do seu lado quando se tratava de conquistar terreno, e bens, aos mouros, mas desavindos entre si nas pausas entre combates, não fosse o diabo tecê-las e uni-los contra si. Tudo era mais perigoso nessa Idade Média, onde a Igreja fazia de União Europeia e Cristo presidia ao Conselho das Tribos, religiosamente fanáticas e sequiosas de glórias e bens terrenos ao mesmo tempo. A contradição só envergonha os filósofos, alguns filósofos. Outro dos sonhos habituais era a de querer fugir, sem nunca saber se conseguia ou não, a uma horda de machos excitados com pénis erectos à procura do seu cu. Narrativa desconfortável, nunca Lourenço sentira a mínima atracção por homens ou caíra em qualquer rasgo satânico. Talvez tivesse que ver com a relação de mestre-discípulo na antiga Grécia Clássica, talvez ele quisesse um mestre que o inseminasse de sabedoria, daquela que ensina a morrer. Talvez, mas a hermenêutica dos sonhos é infinita, os oráculos que dizem decifrá-los deviam ser sistematicamente ridicularizados, apesar de haver mercado, escravos voluntários que se deixam hipnotizar porque têm medo de ser soberanos (embora gritem aos quatro ventos que querem mais soberania nacional, a independência nacional, os destinos de Portugal nas nossas mãos). O que dizer então de outro sonho repetido, embora menos frequente do que os anteriores, em que Lourenço agarrava relâmpagos com as mãos nuas, aguentando a descarga, e tudo o mais que faz de um relâmpago aquilo que ele é. Primeiro capturava um pequeno, o anunciador da tempestade, depois outro, e outro, e mais um... até ficar exausto, momento em que a tempestade cessava e o céu mostrava, num estranho esplendor, todas as estrelas do firmamento. Mas o que o afligia mais encenava a sua falência fisiológica da cintura para baixo, começava por não sentir os pés, depois a parte inferior das pernas, até chegar à cintura, órgãos sexuais incluídos (que no sonho apalpava freneticamente a procura de uma confirmação, em vão). Logo a seguir à paralisia, havia sempre um bando de vagabundos que o perseguiam, e ele a querer fugir, a arrastar-se, com as mãos a fazerem de remos, remando em terra, por cima de um caminho cheio de pedras lascadas. O bando a aproximar-se, sem que pudesse ver nitidamente nenhuma das caras, mas sentia o cheiro nauseabundo e a crueldade luciferina que os envolvia. “Rema mais depressa!”, dizia para consigo, mãos em sangue, como as de Cristo, a boca cheia de pó, as pernas, inúteis, troncos mortos, arrastadas pela força do resto do corpo. Acordava sempre no momento em que, após uma longa perseguição, lhe caiam em cima e extirpavam, pedaço a pedaço, os membros inferiores. Sem as pernas daninhas ganhava então velocidade e levantava voo, deixando para trás os canibais primitivos. Retirado o pedaço de carne e osso inúteis, Lourenço ficava com uma vida de pássaro, era agora um torso voador. E lá de cima tudo parecia diferente, mais belo e vivo, como quando se intensificam as cores de uma fotografia. Talvez pela primeira vez, sentia-se plenamente feliz.

[repito-me, pode um escritor dizer algo de novo, estabelecer a sua marca pessoal? Dificilmente, até no sexo, acto privado por excelência, o que pensamos é um bem, ou mal, comum. Em rigor, repetimos clichés ad nauseam, tudo está colonizado por infindáveis lugares comuns]

No dia-a-dia, a descrença aprofundava-se, como se estivesse sentado em cima de areia movediça sem poder fugir. Cada vez acreditava menos no papel do professor, em qualquer eficácia pedagógica. Recordava amiúde as palavras de Sócrates no início do Banquete, onde contradiz Agaton sobre a possibilidade da sabedoria passar do mais cheio para o mais vazio. Além disso, longe do senso comum escolar, Lourenço era uma personagem apócrifa, cada vez mais levado à emigração interior. Felizmente, a imprensa sensacionalista tinha-se cansado dele, uma ou outra pequena nota, e pouco mais. O Expresso, cada vez mais sério, ainda lhe quis fazer uma “entrevista de fundo”, Lourenço recusou, argumentado que a sua biografia e pensamento eram muito fastidiosos. Mas na escola continuava a ouvir as boquinhas das storas decrépitas e desmioladas. Joaquim aconselhava-lhe a indiferença, eu, pelo contrário, a confrontação, para não lhe comerem papas na cabeça, ou lhe verem cada vez mais o rabo. “É preciso, disse-lhe, mostrar nervo”. Lourenço escolheu o estilo joaquinino, até que num intervalo grande da manhã, uma segunda-feira de Novembro, quente como se fosse Agosto, respondeu ao “Olha o nosso herói!”, lançado ao vento na sala dos professores velhos, com: “Suas putas e seus paneleiros, têm menos pensamento e moral do que dentes, velhas carcaças acéfalas e insensíveis, egoístas incultos, badamerda para vocês, ide todas, e todos, levar no cu, não com os vossos pénis irrisórios, flácidos e minúsculos, mas com mangueiras de profissionais de pornografia!” Um colega mais militante de si mesmo ainda esboçou o contra-ataque, mas Lourenço calou-o imediatamente, e, dizem, para sempre (reformou-se invocando uma doença ligada a afasias), com: “Se abres a merda da boca esmago-te a cabeça contra a parede!”